JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA E COMENTADA 32

Por Mariana Moreira Moura

Na continuidade dos trabalhos desenvolvidos pelo NUDI – UFSM na pesquisa de julgados dos tribunais brasileiros acerca da temática do discurso de ódio, dentro do Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet, cumpre trazer ao enfoque dos leitores, hoje, uma decisão do TRF3, a fim de contribuir para elucidar de que maneira o Poder Judiciário vem enfrentando a temática.

Em pesquisa livre de jurisprudência realizada no site do aludido tribunal, que atende aos Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, utilizando a expressão “discurso de ódio”, foram encontrados três julgados, sendo eles duas apelações cíveis, uma de 2019 e outra de 2020, e uma apelação criminal, de 2020.

A jurisprudência selecionada para comentário nesta ocasião foi a apelação cível de 2020, julgada pela 1º Turma do TRF3 em 12/05/2020, que tratou sobre o discurso de ódio contra indígenas. O caso é oriundo de uma ação civil pública ajuizada no Mato Grosso do Sul pelo Ministério Público Federal (MPF), em decorrência da produção e veiculação, por parte de R.P.B, de curta-metragem de conteúdo atentatório à comunidade indígena Guarani-Kaiowá.

Por meio da ação, a instituição pleiteou a condenação do requerido ao pagamento de compensação pecuniária por danos morais coletivos, no valor de R$ 100.000,00, a ser recolhida ao Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados (art. 13, da Lei 7.347/85). Além disso, requereu o MPF que fosse determinada a reversão, também em favor do relativo Fundo, do montante angariado com os ingressos vendidos para futuras e eventuais apresentações do filme discriminatório.

Segundo se depreende do inteiro teor do julgado, o réu teria produzido um filme intitulado “Matem… Os Outros!”, no qual quatro personagens travam diálogos em que expõem os sentimentos e perspectivas de produtores rurais da região em relação aos conflitos envolvendo índios situados no MS e em outros Estados, bem como com relação aos costumes, modo de vida e questões relacionadas aos direitos e à cultura da comunidade indígena.

Em sentença, o pleito ministerial foi julgado improcedente, havendo o juiz federal considerado que a obra produzida pelo réu não excedeu os limites do regular exercício do direito à liberdade de expressão. O MPF, então, interpôs recurso de apelação, por meio do qual requereu, no mérito, a reforma da sentença recorrida e a procedência do pedido deduzido na inicial.

Afirmou, sobre o ponto, que a obra promove o discurso de ódio e a intolerância, sendo calcado em manifestações de caráter evidentemente discriminatório, tendo como alvo uma minoria estigmatizada, através de um viés etnocêntrico, quer seja, o grupo indígena Guarani-Kaiowá. Prosseguiu destacando a potencialidade lesiva do curta-metragem para a comunidade atingida, vez que reafirma o estigma vinculado à sua imagem. Pontuou, ademais, que o fato de a produção ter sido custeada com verbas públicas torna ainda mais grave e reprovável a conduta do demandado.

Destacou, por fim, haver ficado evidenciado que a situação narrada constitui hipótese caracterizadora de discurso de ódio (hate speech). Assim, explicou que a manifestação foi propagada em desfavor de uma minoria em termos qualitativos, por meio de uma obra exibida para um público indeterminado, de forma capaz de causar intensos danos ao grupo indígena referido. Diante disso, requereu o reconhecimento da configuração de dano moral coletivo e a imperatividade de sua reparação pecuniária.

No julgamento do feito pelo tribunal, foi vencido o Des. Fed. Wilson Zauhy que negava provimento à apelação do MPF, objetivando manter a sentença de improcedência do pedido em seus exatos termos. Assim, com os votos do relator Des. Fed. Helio Nogueira, acompanhado pelos Desembargadores Carlos Francisco e Cotrim Guimarães e pela Juíza Federal Convocada Noemi Martins, houve a reforma da decisão, com a consequente condenação do recorrido pelo reconhecimento da prática de discurso de ódio.

Para elucidar as razões da reforma, o relator do julgado transcreve trechos dos diálogos desenvolvidos no curta-metragem, por meio dos quais é possível verificar, em suas palavras, “a construção de um discurso veiculado com o fim de transmitir ideais preconceituosos e de ódio étnico, atentatórias à dignidade da comunidade indígena.”

Nas falas dos personagens, que estão em uma viagem de carro, é constituída a imagem do indígena como um indivíduo preguiçoso, ignorante, ébrio, que não trabalha e que gera problemas para a população brasileira. Instiga-se o preconceito e incita-se a violência, atribuindo a ele características depreciativas. A título exemplificativo, cita-se alguns trechos das conversas:

“Personagem Valdir (05min:27seg.): […] Nossas vidas valem menos do que a de um bugre? […]

Personagem Valdir (06min:01seg.): O que é que o índio tem para ser intocável? Qual a contribuição dele para o Estado brasileiro? É um troglodita sem passado. E eu, nós, somos europeus com séculos de história e civilização. Produz colares e cocares. Eu planto toneladas de sojas de milho, porque eu tenho que paparicar e sustentar essa escória pelo resto da minha vida? […]

Personagem Chico (06min:30seg.): nós também né? Aliás, por que eles querem as melhores terras do Estado se não plantam nada? Para mim são verdadeiros latifundiários improdutivos, indolentes. […]

Personagem Chico (07min:09seg.): Olha, oitocentos mil índios detêm treze por cento do território nacional e ainda querem mais? Essas terras dariam para alimentar cinquenta milhões de pessoas… mas tem que trabalhar né? Você acha que essa gente é capaz disso? Não, eles querem ficar o dia inteiro deitados numa rede, tomando cachaça e “pimbando” as índias a nossas custas!

Além disso, critica-se a FUNAI, através das conversas entre os personagens, dizendo-se que esta dá dinheiro aos indígenas para comprarem bebida alcoólica, bem como é defendida a falsa ideia de que os indígenas são sempre acobertados pelo manto da inimputabilidade, como se depreende dos seguintes trechos:

Personagem Valdir (gravação aos 05min:01seg.): veja bem, não pude defender a minha propriedade. A Funai disse que consta que um índio andou por lá há duzentos anos e que por isso a terra é indígena, e ai de mim se, para defender a minha casa, eu tivesse que matar um índio. Agora, se ele me matasse, como é inimputável, tava festejando até agora.

[…] Personagem Chico (08min:18seg.):E depois vem a FUNAI lotada de parasitas e ladrões falar em preservar a cultura indígena. Que cultura? De piolho e beiços de pau? Essa gente vive fazendo fogo e riscando pedras, limpam o rabo com folhas. Eles vivem na idade da pedra lascada.

Em certa parte do curta-metragem, os personagens param em uma loja de conveniências de um posto de gasolina, onde um indígena embriagado tenta comprar bebida alcoólica. O dono do bar nega-se à venda e o expulsa, afirmando que não quer dinheiro da FUNAI. Em seguida, diz que se o homem dançar o samba do indígena, pode beber, dizendo, em tom sarcástico, para comemorarem que este está “tomando a terra do homem branco”.

O indígena, então, dança, momento em que o dono do bar começa a dar gargalhadas e dizer “Isso, tá no puteiro, comendo a mulher dos brancos, então vamos comemorar isso, dança.” Em seguida, dois dos passageiros do carro oferecem carona ao indígena, ocasião em que os outros dois tripulantes se negam a viajar em sua companhia.

Um dos personagens declara: “Agradeço a carona, mas vou pegar outra condução. Eu não vou viajar com ele dentro do carro, sou racista”. O indígena, então, é colocado em um compartimento traseiro, separado por uma grade, sendo levado para uma reserva indígena.

Personagem Valdir (21min:20seg): deve ser um rejeitado pela tribo, bêbado a essa hora enquanto os outros estão saqueando fazenda. […]

Personagem Valdir (21min:36seg): já ajudei muito índio, até com dinheiro, hoje eu quero que se explodam! […]

Personagem Edson (22min:28seg): o Estado brasileiro não atende às necessidades básicas da sua própria população. Vejam aí essas manifestações de rua… protestos, vandalismo, nosso nível cultural é muito baixo, sistematicamente elegemos ineptos, corruptos, Brasília, FUNAI, ONGs, isso tudo é um monte de merda, estão cagando pra situação de vocês, essa que é a verdade. […]

Personagem Edson (23min:03seg): escreve aí, essa indenização para os invadidos é só cala-boca. Os índios vão continuar invadindo… Até pintar um banho de sangue absolutamente nada vai mudar. […]

Personagem Edson (23min:19seg): e eu vou falar uma coisa pra vocês, sabe o que é pior? Os índios foram picados por essa droga e estão virando traficantes…

Diante do contexto sinteticamente narrado, a partir dos aspectos principais da demonstração da ocorrência de discurso de ódio na narrativa apresentada no curta-metragem, o relator chega à conclusão de que

As manifestações explicitadas pelos personagens conduzem à formação de uma concepção discriminatória etnocêntrica, direcionada à violação de bens jurídicos atinentes à esfera extrapatrimonial de determinada comunidade. Os diálogos transcritos – notadamente, os trechos destacados – demonstram a promoção de discurso de ódio e intolerância, calcado em declarações de caráter notoriamente discriminatório, ferindo o direito à igualdade e promovendo a violência.

O desembargador, nesse sentido, afirma que não prospera a alegação do recorrido de que estaria exercendo de modo legítimo o direito à liberdade de expressão. Assim, realizando uma ponderação em sentido amplo, ele reconhece que houve, no caso, violação aos limites do relativo direito, de modo a se caracterizar hipótese justificadora de legítima restrição à manifestação de pensamento, em prol da tutela da isonomia em sentido material e dos direitos à dignidade humana e à não-discriminação.

Para fundamentar a decisão, cita trechos de uma obra de Daniel Sarmento, em que o autor conceitua o discurso de ódio, concluindo, com apoio nas lições do doutrinador, que o caso em apreço trata de prática lesiva à dignidade da pessoa humana, cuja vedação é legitimada. Além disso, transcreve também parte do voto proferido pelo Min. Roberto Barroso na ADC 41/DF, em que este explica que não é plausível atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, devendo tal direito encontrar balizas em outros valores democráticos, de modo a viabilizar a interdição do discurso de ódio.

Conclui-se do exame do julgado que a decisão nele proferida representa um avanço no reconhecimento, no Brasil, da existência do discurso de ódio enquanto prática atentatória a, dentre outros, o direito à dignidade da pessoa humana. O acórdão identifica, no caso em concreto, a incidência da relativa modalidade discursiva, apontando o preenchimento de todos os requisitos para a constatação de sua configuração.

Nessa trilha, ele demonstra terem sido proferidas por membros de um grupo majoritário mensagens atentatórias a valores coletivos de um grupo minoritário e estigmatizado, transmitindo ideias preconceituosas e de ódio étnico e, inclusive, incitando o preconceito, a discriminação e a violência. Para além, o julgado em questão também trata sobre o embate entre direitos fundamentais, apontando a necessidade da imposição de limites à liberdade de expressão, que não pode ser utilizada para justificar manifestações odientas.

Vê-se, portanto, que é acertada a decisão tanto pela lógica de descrever corretamente o que é o discurso de ódio e por quais elementos ele é composto, quanto por, cotejando o conceito com a realidade fática, concluir pela ocorrência deste no caso em apreço. A jurisprudência analisada, logo, merece servir de exemplo para o Poder Judiciário brasileiro na temática.

Inteiro teor: http://web.trf3.jus.br/base-textual/Home/ListaColecao/9?np=1

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