Outros casos de violação de Direitos – Jurisprudência 4

Por Mariana Moreira Moura

Durante pesquisa realizada no site do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no dia 13 de junho de 2018, não se identificou nenhum resultado ao se procurar as palavras-chaves “discurso de ódio”. Pesquisando o termo “racismo” no mecanismo de busca, entretanto, quinze resultados foram encontrados, sendo uma jurisprudência selecionada para análise. Desde já, cabe salientar que não se trata aqui, de fato, de um julgado em que se configura o discurso de ódio. Todavia, o caso não deixa de ser pertinente justamente por se assemelhar em muito com a temática do Observatório. Assim sendo, considerou-se adequado trazê-lo ao blog na nova sessão que se inicia, denominada “casos relacionados”.

De acordo com a ementa, o réu foi denunciado e condenado pela prática do crime de racismo, previsto no artigo 20, §1º, da Lei nº 7.716/89, por ter criado um perfil na rede social Orkut, intitulado “IMAGO MORTIS/GeStApO”, em que constava não só uma representação gráfica da cruz suástica, como também informações que faziam apologia ao nazismo. Conforme o juiz federal Leonel Ferreira, pela análise da página inicial do perfil, conjugada com as imagens, músicas, textos e os inúmeros contatos cujos nomes referem-se, primordialmente, ao nazismo, arquivados no computador do réu, não resta dúvidas de que este veiculou símbolos, ornamentos, distintivos e propagandas que utilizavam a cruz suástica para fins de divulgação do nazismo – movimento que propagava a ideia da superioridade da raça ariana, e do extermínio de povos minoritários. No acórdão, a desembargadora Cecilia Mello, que fez a relatoria do caso, cita o habeas corpus julgado pelo Ministro Moreira Alves do Supremo Tribunal Federal, que diz:

As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica (HC 82424, MOREIRA ALVES, STF).

Desse modo, considera-se, ao fazer uma interpretação hermenêutica do caso, que não pode se deixar que a liberdade de expressão se consagre em detrimento de outros direitos. Ela deve ser relativizada à medida que esbarrar em outras garantias constitucionais, sendo essencial que prevaleça sempre o princípio da dignidade da pessoa humana.

Sabe-se que, para que se configure o discurso de ódio, é necessário que se insulte, intimide ou assedie um grupo em virtude de uma determinada característica que ele possui, com o intuito de discriminar, inferiorizar, promover e incitar a violência contra esse conjunto de pessoas. Assim, embora o réu da ação não se amolde perfeitamente a esses requisitos, pois não publiciza exatamente essa incitação; é bem claro o elemento volitivo de hostilidade com relação ao povo judeu e africano, haja vista a quantidade de e-mails nazistas trocados com outras pessoas, e também de arquivos preconceituosos encontrados em seu computador. Nesse sentido, há diversas canções de cunho odioso, algo relatado pelo juiz no acórdão:

As letras das músicas possuem forte conteúdo discriminatório e algumas delas fazem referência ao nazismo, tal como a letra da música intitulada “Peste Negra, que transcrevo abaixo (fls. 246):

Negro, negro

Vê se ti manca

Cai fora do meu país

Levando junto o teu samba

Negro, negro

Sai da minha nação

Para baixar o índice de ladrão

[…] Negro, negro

Sai do meu país

Para me deixar

Mais feliz

Negro, negro

Cai na real

Ainda és primitivo é só um animal

Na minha nação

Tu não tens mais lugar

[…]Volte para a África macaco desgraçado

Não temos mais senzalas pra você vegetar” (APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0010318-94.2006.4.03.6181/SP, LEONEL FERREIRA, TRF 3)

Desse modo, resta evidente que o réu possuía, de fato, não só extremo preconceito, como também uma vontade muito explícita do aniquilamento de grupos por ele inferiorizados. Entretanto, ao compartilhar conteúdos racistas, cuidava sempre para não extrapolar a linha tênue que separa os crimes contra a honra, tipificados pelo ordenamento jurídico brasileiro, do discurso de ódio. Assim sendo, não foi possível enquadrá-lo nessa última conduta, sendo ele, logo, punido pela prática do racismo.

Dessa maneira, foi o réu condenado à pena de 10 dias-multa, e a dois anos de reclusão em regime aberto, o que foi substituído por uma pena de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas filantrópicas ou assistenciais, e por uma pena de limitação de final de semana, que foi, por sua vez, modificada, após a apelação criminal, para uma pena de prestação pecuniária equivalente a 24 salários mínimos.

Inteiro teor do julgado: <https://trf-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/317128356/apelacao-criminal-acr-103189420064036181-sp-0010318-9420064036181/inteiro-teor-317128438?ref=serp>; Acesso em 13 Jun. 2018.

REFERÊNCIAS:

 (TRF-3 – ACR: 00103189420064036181 SP 0010318-94.2006.4.03.6181, Relator: JUIZ CONVOCADO LEONEL FERREIRA, Data de Julgamento: 26/01/2016, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: e-DJF3 Judicial 1 DATA:01/02/2016). Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/770347/habeas-corpus-hc-82424-rs>; Acesso em: 13 Jun. 2018.

 

Outros casos de violação de Direitos – Jurisprudência 2

Por Bianca Petri

Através dessa publicação, o Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet dá sequência as postagens referentes à violação de outros direitos, os quais não se enquadram enquanto discurso de ódio. No presente caso, será analisado acórdão proveniente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que abrange os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul.

A pesquisa foi realizada no dia 04 de setembro de 2018, com delimitação temporal de 01/01/2010 a 04/09/2018, através do mecanismo de procura localizado no site do Tribunal, utilizando-se o termo “Racismo”. Foram encontrados dez resultados, e destes foi selecionado o acórdão em que foi julgado, no dia 05 de abril de 2018, o recurso de apelação cível interposto pela Rádio e Televisão Record S/A e pela Rede Mulher de Televisão Ltda.

A demanda foi ajuizada pelo Ministério Público Federal, Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (INTECAB) e Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (CEERT) em face das rés supracitadas, afirmando que as religiões afro-brasileiras sofreram ataques constantes em programas veiculados pelas emissoras-rés.

Assim, a parte autora pleiteava a condenação destas na obrigação de fazer consistente em colocar estúdio e estrutura pertinentes à disposição das associações autoras, assim como pessoal de apoio necessário à gravação e exibição de programas televisivos a título de direito de resposta coletivo.

Isso porque, segundo restara demonstrado na ação civil pública, na programação da Rede Record e outras emissoras ligadas à Igreja Universal do Reino de Deus sucederam-se inúmeros episódios em que os sacerdotes da umbanda e do candomblé eram chamados de pais e mães de encosto e os orixás eram tratados como demônios.

Tais atos, de acordo com o entendimento da relatora e dos demais desembargadores:

“[…] tem um nítido caráter pejorativo e discriminatório, sendo fundamental o respeito e a preservação das manifestações culturais dos afrodescendentes, por fazerem parte do processo civilizatório nacional e merecerem, por essa razão, a tutela constitucional dispensada pelo art. 215, caput e § 1º, da Constituição da República.

  1. O menosprezo às religiões afro-brasileiras, constrangendo seus adeptos e imputando-lhes expressões ofensivas, configura verdadeiro desrespeito à liberdade de crença, bem como à dignidade da pessoa humana.”

Na ementa ressalta-se que a liberdade de expressão deve ser ponderada em vista da liberdade religiosa, posto que ambas as garantias são asseguradas pela Constituição Federal de 1988. A partir do momento que a manifestação da crença se dá através do desrespeitos a outras matrizes religiosas, não há que se falar em liberdade de expressão irrestrita.

Assim dispõe a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

“Na seara religiosa, é vasto o campo que se abre para as diversas formas de preconceitos, discriminações e desrespeitos de toda ordem, que se alia à ignorância em relação a práticas distintas de crenças diversas, confundindo-se a liberdade de expressão religiosa com o “direito” a oprimir e destruir simbólica ou fisicamente outrem.”

Além disso, destaca-se, no acórdão, que a execução do serviço público de radiodifusão pode ser empreendida por um particular mediante concessão do Poder Público, de modo que esse direito não pode ser usufruído em detrimento do interesse público. O interesse da coletividade, o qual revela-se nas disposições constitucionais, é justamente a garantia de um Estado laico que não beneficie uma ou outra religião.

Ainda, é importante abordar que o discurso propagado pela emissora não se enquadra propriamente como discurso de ódio, tendo em vista que a incitação à violência, elemento essencial dessa modalidade de discurso, não se apresenta na manifestação televisiva.

Nesse sentido, as postagens das “Jurisprudências Selecionadas e Comentadas” sobre discurso de ódio desse Blog, já haviam explanado a conceituação de discurso de ódio, porém é fundamental reforçar o entendimento doutrinário sobre o tema. Segundo as disposições de Rothenburg e Stroppa (2015, p. 4):

“Em outras palavras, o discurso de ódio consiste na divulgação de mensagens que difundem e estimulam o ódio racial, a xenofobia, a homofobia e outras formas de ódio baseadas na intolerância e que confrontam os limites éticos de convivência com o objetivo de justificar a privação de direitos.”

Entretanto, mesmo que o discurso propagado pela emissora não seja classificado diretamente como discurso de ódio, indiretamente a sua propagação pode fomentar a intolerância religiosa, visto que cria no imaginário popular a ideia de antagonismo entre as religiões.

Um exemplo concreto de intolerância religiosa foi o ataque a uma menina de 11 anos, ferida por uma pedra na cabeça ao deixar um culto de candomblé na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. “Segundo testemunhas, a menina foi atacada por evangélicos e foi vítima de intolerância religiosa. Com a pedrada, a jovem chegou a desmaiar e perder momentaneamente a memória.”

Conforme ressaltado no acórdão, a Constituição Federal prevê a laicidade do Estado Democrático de Direito brasileiro, bem com o direito a todas as formas de crença, de modo que a intervenção estatal faz-se necessária quando esses direitos são violados. Assim, a decisão proferida pelo TRF3, com base nas colocações acima dispostas, negou provimento às apelações interpostas pelas rés.

Desse modo, o pedido requerido pela parte autora “para condenar as rés a produzir, cada uma delas, 4 (quatro) programas de televisão, com duração mínima de uma hora, cada, a título de DIREITO DE RESPOSTA às religiões de origem africana, (…)”, foi concedido, tendo como base o art. 5º, V e VI, in verbis:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

 

Para consultar a decisão do Tribunal na íntegra, clique aqui (http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/6494767).

 

REFERÊNCIAS:

UOL, Notícias. Menina é apedrejada na saída de culto de candomblé no Rio. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/06/16/menina-e-apedrejada-na-saida-de-culto-de-candomble-no-rio.htm. Acesso em: 04/09/2018.

ROTHENBURG, Walter Claudius; STROPPA, Tatiana. Liberdade de expressão e discurso de ódio: o conflito discursivo nas redes sociais. In: Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade, Santa Maria, 2015.

Outros casos de violação de Direitos: Jurisprudência 1

O Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet inaugura, neste dia 17 de julho de 2018, um novo espaço, denominado “Outros casos de violação de Direitos“. O objetivo é compartilhar com os nossos leitores jurisprudências selecionadas e comentadas que, muito embora não configurem discursos de ódio, pela ausência de algum de seus elementos, violam direitos e promovem a discriminação.

Nesta semana, iniciamos com a jurisprudência proveniente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, selecionada e comentada pela integrante do Observatório, Isabel Bortoluzzi.

O julgado selecionado e comentado de hoje provém do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que tem sob jurisdição os estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Na busca jurisprudencial as palavras chaves utilizadas foram “redes sociais” e “racismo”, obtendo dois resultados, sendo que somente um vinculou-se realmente ao tema.

O Acórdão ora analisado, foi julgado em 27 de maio de 2016 e trata-se de pedido de habeas corpus em favor de “A” que busca o trancamento da ação penal, ao argumento de que se trataria de denúncia inepta. Ocorre que no caso concreto H. C. B. pede à “A” que retire de sua casa imagens relacionadas à religião de matriz africana (umbanda), pois havia se convertido à religião protestante. Atendendo ao pedido “A” retira as imagens da casa de H. C. B. e na sequência leva à um terreno baldio, local em que quebra os objetos, fotografa a ação e posteriormente posta em redes sociais o ocorrido, de modo a tornar as imagens acessíveis a todos.

Em razão desses fatos o Ministério Público Federal acusou “A”, sendo que sua prática tipificou o art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89, como racismo qualificado pelo uso dos meios de comunicação social. E nesse sentido “A” busca o trancamento da ação penal, alegando que agiu motivado por seu direito de liberdade de crença, estabelecido no art 5º da Constituição Federal e diz-se deter, em decorrência disso, de imunidade religiosa e estar agindo conforme exercício regular de direito.

Conforme observa o relator e desembargador Rubens De Mendonça Canuto Neto, o trancamento da ação penal trata-se de medida excepcional e somente ocorrendo quando: a) a ausência de indícios de autoria ou a inexistência de materialidade delitiva; b) a atipicidade da conduta; ou c) a extinção da punibilidade do réu. Que como analisado, não se encaixaria no caso concreto.

Rubens de Mendonça ainda reforça que nas imagens contidas nos autos, vê-se claramente o denunciado segurando uma marreta e insinuando a quebra das imagens e posteriormente fotos com elas quebradas. Ficando-se, portanto, incoerente sua insistência em invocar a liberdade de crença com intuito de alegar atipicidade em sua conduta. Como bem reforça o relator, a Constituição realmente consagra e tutela a inviolabilidade de liberdade de consciência e de crença, sendo protegido o exercício de cultos religiosos e proteção aos locais de culto. Entretanto esse dispositivo constitucional não permite “A” fazer o que fez.

Conforme o relator:

Na verdade, ao proceder de maneira tão agressiva diante de símbolos representativos da umbanda, o denunciado incorreu em atos claramente discriminatórios, proferindo insultos às entidades sagradas da religião profanada. Incorreu, pois, em ofensa ao que resta consagrado no texto da Magna Carta, “fonte do necessário respeito mútuo que deve ser guardado pelos seguidores das mais diversas religiões”.

Como bem acertado e por unanimidade, a quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região nega o pedido.

Em decorrência da jurisprudência analisada podemos perceber que o presente caso demonstra que a intolerância se caracteriza em diversas formas, como aqui implícito em imagens postadas em redes sociais, de condutas totalmente discriminatórias à religião umbanda.