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(FINALMENTE) INJÚRIA LGBTI+FÓBICA É RECONHECIDA COMO CRIME DE RACISMO: E AGORA?

Por Pablo Domingues

Em 2019 o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do que ficou conhecido como a criminalização da homotransfobia[1]. Em resumo, a Suprema Corte reconheceu o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional em editar lei que criminalizasse a LGBTI+fobia e, por consequência, visando o preenchimento dessa lacuna, determinou que fosse aplicada a Lei n. 7.716/89 (Lei do Crime Racial) para essas condutas até a edição de alguma lei específica sobre a matéria.

A consequência prática do julgamento foi a extensão da Lei do Crime Racial, e os tipos penais nela previstos, às condutas LGBTI+fóbicas, bem como atribuiu a elas as características que a própria Constituição Federal prevê para os crimes de racismo, como a imprescritibilidade e a inafiançabilidade (artigo 5º, XLII, da Constituição Federal[2])

A LGBTI+fobia passou a ser compreendida como uma forma de racismo. Inclusive, essa informação encontra-se expressa na tese de julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, relatada pelo Min. Celso de Mello:

III - O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito (grifos meus)

À época do julgamento, a Lei do Crimes Racial previa uma série de condutas que se enquadravam no conceito amplo de “crime de racismo”, como por exemplo o artigo 20 que dispunha ser crime

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Entretanto, nessa mesma época, o Código Penal previa um crime denominado de “injúria racial”, uma qualificadora do crime de injúria:

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
§ 3 Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:             (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena – reclusão de um a três anos e multa.   

Dada a coexistência de dois crimes, o de injúria racial e aqueles previstos na Lei do Crime Racial, era necessário diferenciá-los. Conceitualmente, injúria racial era definida como uma ofensa à honra da vítima, valendo-se de elementos relacionados a sua raça, cor, etnia, religião ou origem[3]. Já os crimes de racismo eram diferenciados da injúria racial a partir de quem era a vítima. Nos crimes de racismo a “vítima” seria toda uma coletividade não individualizada, utilizando a violência praticada de elementos ligados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional desse grupo atingido. O exemplo tradicionalmente dado diferenciava, por exemplo, uma ofensa racista proferida diretamente contra uma pessoa (seria injúria racial) e outra ofensa destinada a toda comunidade negra (seria crime de racismo).

Os exemplos dados, em verdade, apenas tentavam suprir uma lacuna deixada pela criação dessa diferença pela legislação brasileira. É claro que qualquer injúria racial também é racismo, seja do ponto de vista sociológico, seja pela própria leitura da lei. Afinal, não havia qualquer norma, seja na Lei do Crime Racial, seja no Código Penal, que expressamente diferenciasse esses tipos penais. Cabia, portanto, aos Tribunais e à literatura especializada diferenciá-los.

Em 2023 o cenário mudou com a promulgação da Lei n. 14.532/2023, que retirou a injúria racial do Código Penal e a transferiu para a Lei de Crimes Raciais. Sobre essa nova lei, já fiz um texto aqui no blog comentando-a[4].

Dessa forma, a partir de 11 de janeiro de 2023, data da promulgação dessa lei, descabe diferenciar os crimes de injúria racial e de racismo, porque, ao fim ao cabo, injúria racial é racismo. A nova lei apenas positivou, corretamente, algo que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal há muito já afirmavam, sobretudo a partir do julgamento do Caso Ellwanger pelo STF (HC n. 82.424). Inclusive, antes mesmo dessa nova lei, o STF equiparou o racismo e a injúria racial no julgamento do HC n. 154.248 em 2022[5], conforme trecho do voto do relator Min. Edson Fachin:

2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

Entretanto, à época do julgamento da criminalização da homotransfobia, pecou o STF ao ter deixado de consignar expressamente que a homotransfobia não seria apenas crime de racismo, mas também de injúria racial, já que ainda imperava a antiga diferenciação entre esses dois delitos. Assim, entre o julgamento da criminalização da homotransfobia em 2019, e a nova lei de 2023, condutas que pudessem se enquadrar como “injúria homotransfóbica” careciam de previsão legal, a despeito do entendimento do STF e do STJ já apontar diversas vezes para uma igualdade entre esses tipos penais.

Essa lacuna, agora, não mais existe, afinal, não se faz mais justificável a diferenciação entre injúria racial (artigo 140, §3º, do Código Penal) e racismo (delitos da Lei n. 7.716/89), a partir da Lei n. 14.532/23. Contudo, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), autora de uma das ações de 2019, opôs embargos de declaração contra o acórdão no Mandado de Injunção n. 4733, noticiando ao Supremo que a lacuna deixada no julgamento permitia que membros do Ministério Público e autoridades policiais arquivassem inquéritos e demais investigações sobre “injúria homotransfóbica” por ausência de previsão expressa no julgamento do STF.

Para a ABGLT, a decisão do Supremo estaria sendo interpretada de forma equivocada, no sentido de que a ofensa contra grupos LGBTI+ configura racismo, mas a ofensa à honra de pessoas pertencentes a esses grupos vulnerabilizados não configuraria o crime de injúria racial. Essa lacuna deixada prejudicaria a aplicabilidade prática da decisão do STF, sobretudo porque não se ignora a existência da violência estrutural LGBTI+fóbica, presente na sociedade e, também, por óbvio, nas instituições do Estado, que contribui para que os agentes estatais reproduzam preconceitos, inclusive no momento de tomada de decisão sobre a imputação criminal a algum fato noticiado.

 De acordo com a associação, isso retirava, em grande parte, a aplicabilidade prática da decisão do STF, e, por isso, requereu que fosse sanada essa omissão por meio dos embargos de declaração. Não surpreende o que foi noticiado pela ABGLT, sobretudo porque a própria Lei do Crime Racial ainda é mal aplicada para questões envolvendo racismo contra o povo negro. Inclusive, a própria evolução jurisprudencial do STJ e do STF em reconhecer o antigo crime de injúria racial como crime de racismo, derivou, também, da denúncia feita há muito pela academia de que o Sistema de Justiça Criminal reluta em reconhecer condutas racistas como racismo e destinava a elas o rótulo da injúria racial, por ser um crime penalmente “menos grave”[6].

As leis antirracismo brasileiras exigem, para condenar alguém por racismo, que o acusado tenha agido com intenção racista. Entretanto, os Tribunais brasileiros demonstram falta de seriedade para lidar com esse tipo de crime e evitam impor as pesadas sentenças estabelecidas pela Constituição Federal aos culpados por crime de racismo:

Juízes e promotores, assim como demais membros da sociedade brasileira, veem supostos incidentes de racismo como inócuos e não estão dispostos a colocar os infratores atrás das grades por um tipo de comportamento que é comum na sociedade brasileira. (TELLES, 2003, p. 264)[7]

Assim, como afirma Thula Pires[8] “deixar de aplicar normas de teor antirracista, esvaziar as medidas de promoção da igualdade racial e fortalecer a imagem do negro como delinquente são exemplos mais que evidentes de uso oficial do Direito contra a população preta e parda”.

O recurso de embargos de declaração da ABGLT foi então julgado pelo Supremo que concluiu que houve, de fato, omissão no julgamento de 2019. Em seu voto, o relator Min. Edson Fachin destacou que “a tese que sustenta os presentes embargos, qual seja, o reconhecimento do crime de injúria racial como espécie do gênero racismo, já foi acolhida pela recente jurisprudência desta Suprema Corte”. De fato, desde o julgamento do HC n. 154.248 em 2022, o Supremo Tribunal Federal encerrou a discussão jurisprudencial sobre a diferença entre injúria racial e racismo, ao equiparar ambos os tipos penais para todos os efeitos.

Encerrou o ministro relator indicando que “tendo em vista que a injúria racial constitui uma espécie do crime de racismo, e que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual configura racismo por raça, a prática da homotransfobia pode configurar crime de injúria racial”.

O julgamento se deu no plenário do STF, com somente um único voto contrário ao do relator. O novo Min. Cristiano Zanin divergiu, porque entendeu que a matéria do recurso ampliaria os pedidos da ABGLT, que na inicial do mandado de injunção não requereu a equiparação expressa da homotransfobia com a antiga injúria racial.

Desse julgamento gostaria de destacar dois pontos, que se convergem e tem no voto do ministro Zanin o seu melhor exemplo.

A motivação do recurso da ABGLT se deu, como a entidade explicou, pela má interpretação dada pelo Sistema de Justiça Criminal ao julgamento do Supremo de 2019. Ora, em 2019 o Supremo afirmou categoricamente que LGBTI+fobia é espécie de racismo, compreendendo racismo não apenas como um conjunto de preconceitos e discriminações destinados às pessoas negras, mas também sendo a identidade de gênero e a sexualidade enquadradas como raça. A despeito das várias e corretas críticas à decisão do Supremo, sobretudo a partir da conclusão de que sexualidade e identidade de gênero são espécies de racismo por raça, fato é que a decisão do STF foi bem clara.

Na realidade, a má interpretação da decisão, noticiada pela ABGLT, não se trata de um erro cognitivo interpretativo, mas de uma conduta deliberada e intencional de agentes do Sistema Penal que se recusam a aplicar a decisão do Supremo, valendo-se de esquemas interpretativos delirantes e deliberadamente míopes. Se o termo chave em ambos os crimes em questão era o vocábulo “raça”, e o Supremo disse “homotransfobia é racismo de raça”, qual a dúvida? Por que não aplicar a decisão do STF para crimes de injúria racial? Perguntas retóricas, porque sabemos a razão da recusa dos agentes estatais em reconhecer violências decorrentes de toda estrutura social, aqui estrutura LGBTI+fóbica, que nesses agentes se (re)produz cotidianamente.

Afinal, raça pode ser um conceito jurídico distinto caso estejamos analisando a Lei de Crimes Raciais ou o Código Penal? Alguns representantes estatais, pelo visto, acreditam que sim. Por isso, respeitosamente, digo que a decisão do Min. Zanin preferiu destinar toda atenção para aspectos processuais, essencial é claro, porque processo é forma e garantia, mas ignorou a base da interpretação de toda e qualquer norma jurídica: a simples lógica.

De qualquer modo, o Supremo precisou dizer que o fogo queima, a luz brilha e a água é molhada. No período entre 2019 e 2023, condutas homotransfóbicas podem, sim, serem tipificadas ou como racismo, ou como o antigo delito de injúria racial, a depender da conduta praticada pelo réu, a partir daquela diferenciação tradicionalmente feita. Para fins práticos, muda a pena do crime e só.

E a anterioridade penal? Sabemos que é constitucionalmente vedada a retroatividade de nova lei (ou nova interpretação), caso essa seja prejudicial ao réu[9]. Acredito que não há qualquer vedação para que essa nova orientação do Supremo atinja o período entre 2019 e 2023. Não se trata de retroatividade de interpretação prejudicial, mas um julgamento de um recurso declaratório, cujo efeito é, obviamente, declarar. Ademais, não há qualquer efeito infringente concedido aos embargos de declaração, o que, processualmente falando, indica que o julgamento de 2019 e esse de 2023 tiveram a mesma conclusão jurídica. Não houve modificação do entendimento do Supremo a partir do julgamento dos embargos de declaração, de modo que a conclusão dos embargos de declaração pode ser conferida a casos concretos como se tivesse sido tomada em 2019.  

Desse histórico, percebemos que o óbvio também precisa ser dito, para evitar supostas interpretações que, intencionalmente, valem-se de uma hermenêutica desprovida de lógica interpretativa e inebriada de sintomas que denunciam a permanência da LGBTI+fobia estrutural e institucional no Sistema de Justiça Criminal brasileiro.


[1] Julgamento da ADO 26, Relator: CELSO DE MELLO, e MI 4733, Relator: EDSON FACHIN, ambos julgados pelo Tribunal Pleno em 13/06/2019

[2]Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

[3] O antigo §3º do artigo 140 do Código Penal previa, também, a injúria etária (em razão da condição de pessoa idosa) e injúria capacitista (em razão de ser pessoa com deficiência).

[4]https://nudiufsm.wordpress.com/2023/01/27/parte-3-comentarios-sobre-a-lei-n-o-14-532-2023-que-equipara-injuria-racial-a-racismo-e-nao-nao-ha-criminalizacao-de-humoristas-por-piadas-ofensivas/

[5] Ementa: HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL (ART. 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL). ESPÉCIE DO GÊNERO RACISMO. IMPRESCRITIBILIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Depreende-se das normas do texto constitucional, de compromissos internacionais e de julgados do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento objetivo do racismo estrutural como dado da realidade brasileira ainda a ser superado por meio da soma de esforços do Poder Público e de todo o conjunto da sociedade. 2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo. 4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível. 5. Ordem de habeas corpus denegada.

(HC 154248, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-036  DIVULG 22-02-2022  PUBLIC 23-02-2022)

[6] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

[7] TELLES, Edward. Racismo à Brasileira: Uma Nova Perspectiva Sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Ford, p. 264, 2003.

[8] PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e legitimação do controle social sobre os negros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Brado Negro, p. 281, 2016. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=34475@1. Acesso em: 03 set. 2023.

[9] Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

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Discurso de ódio versus liberdade de expressão: Análise de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul sobre incitação ao ódio em redes sociais

Por Isadora Balestrin Guterres

O julgado analisado foi objeto de recente decisão, no dia 14 de agosto de 2023, pela 10° Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. O Relator Túlio de Oliveira Martins julgou de forma monocrática o Agravo Instrumento Interposto por J.A.V.O contra decisão que determinou o bloqueio de suas redes sociais Instagram e Tik Tok nos autos ordinários da ação indenizatória ajuizada pelos Autores, ora Agravados.

Nas razões recursais apresentadas pelo Agravante, este alegou ter cumprido a determinação pelo juízo a quo, isto é, de exclusão de postagens e marcações de suas redes sociais, todavia, ressaltou que as novas publicações não vincularam nem mencionaram os nomes dos autores da ação.

O Relator do caso, em sua fundamentação, ressaltou que a ação indenizatória teve origem em razão da parte Ré/Agravante ter divulgado o número de telefones dos Autores/Agravados nas referidas redes sociais, incitando o ódio para que seus seguidores cobrassem uma dívida decorrente de uma batida de carro causado por um dos Autores em face do Réu. Porém, em razão dessa exposição, os Autores receberam inúmeras ameaças, bem como sofreram ampla humilhação no ambiente virtual.

Acerca do caso, o Relator destacou se tratar de uma situação sui generis, visto que além da conduta do Agravante ser extremamente grave, visto que expôs informações pessoais dos Agravados e, concomitante, incitou o ódio em face destes mediante manifestação em suas redes sociais, aquele já havia descumprido deliberadamente determinações judiciais, demonstrando não haver limite em seu comportamento. Nesse sentido, acertado a ponderação entre liberdade de expressão e discurso de ódio estabelecida na decisão, a qual ressalta que:

“As informações pessoais dos autores foram divulgadas em domínios na rede mundial de computadores, alcançando uma vasta gama de pessoas, ultrapassando em muito aquilo que se pode configurar uma livre, justa e ponderável manifestação de pensamento, cujas expressões empregadas não se deram em observância às demais garantias constitucionalmente previstas, tais como a honra, a moral, a imagem, a dignidade e a respeitabilidade do cidadão, estes que se tem como valores e preceitos igualmente protegidos como princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
O direito à liberdade de expressão não pode servir como escudo a avalizar o discurso ao ódio e o fomento à incitação pública, afrontando a dignidade dos autores e ainda o direito à liberdade e à vida, tendo em vista que as inúmeras ameaças recebidas poderiam ter sido colocadas em prática”. [Grifo nosso] (BRASIL, 2023)

Essa ponderação estabelecida na decisão sobreveio acertadamente ao caso, além de estar em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro. Ao ressaltar que a manifestação proferida nas redes sociais ultrapassou os limites que correspondem ao direito de expressar-se de forma livre, violando a dignidade da pessoa humana, e, adentrando a esfera de um discurso de ódio, a decisão ressaltou o caráter não absoluto da liberdade de expressão.

Diante dessa ponderação estabelecida da liberdade de expressão enquanto direito fundamental de caráter não absoluto, sobretudo quando diante de discursos que incitam o ódio e violam a privacidade, a honra, a imagem e o nome das pessoas, o Relator do caso negou provimento ao recurso.

(BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento n° 5219856-65.2023.8.21.7000/RS. Relator Túlio de Oliveira Martins. 10a a Câmara Cível. Julgado em 14 de ago. 2023).

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A LGPD e o compartilhamento de dados pelo poder público; uma análise do julgamento da ADI 6649 e ADPF 695.

Por Arthur Zamurano Medeiros

O compartilhamento de dados por instituições públicas é tema presente na Lei nº 13.709, de 2018 – LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) ainda em seu artigo 1º, quando estabelece que as pessoas jurídicas de direito público deverão regular o tratamento dos dados pessoais com base em seus preceitos. Entretanto, por se tratar de uma norma relativamente nova, é previsível que existam lacunas interpretativas e legislativas em sua redação. Nesse sentindo, o julgamento da ADI 6649 e a ADPF 695, realizado no dia 15 de outubro de 2022, representa um referencial importante ao se analisar como o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionam em relação entre os dados pessoais e o Estado a partir da criação do Cadastro Base do Cidadão e do Comitê Central de Governança de Dados, criados por meio do Decreto nº 10.046/20191.

Em primeiro lugar cabe observar o voto do Ministro relator Gilmar Mendes, o qual sustenta a possibilidade da criação Cadastro Base, bem como do Comitê, desde que observados os princípios da LGPD. Dentre esses princípios, destacam-se: finalidade legítima, compatibilidade com as finalidades, minimicidade e demais exigências, como a aplicação severa do artigo 23, inciso I, designando que deverá haver a devida publicidade nos casos em que os agentes públicos tratem os dados, desde que esses não se encontrem em restrições legais. Assim, discorre o citado dispositivo legal, “fornecendo informações claras e atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para a execução dessas atividades, em veículos de fácil acesso, referencialmente em seus sítios eletrônicos”2. Concomitante a isso, declara o mesmo ministro a inconstitucionalidade com efeito futuro do artigo 22 do decreto, que organizava a estrutura do Comitê Central de Governança de Dados, visto que este em seu texto original não garantia o livre desenvolvimento da atividade, atribuindo então o prazo de 60 dias para que o poder público ajuste a norma, formando um comitê independente e plural, além da criação de possíveis responsabilizações para agentes infratores.

Para fins de melhor apreciação crítica do julgado, analisam-se alguns pontos sensíveis presentes, a ser abordados de forma mais cautelosa e crítica.

  1. Ausência de especificação da utilização dos dados entre os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autarquias, fundações e demais Poderes da União. Uma vez que o decreto em tela estabelece como diretriz de autorização de tratamento de dados pessoais, verbos genéricos de interpretação ambígua em seu artigo primeiro, como simplificar, orientar, otimizar a oferta de serviços públicos entre outros, possibilitando assim que tais parâmetros permitam uma arbitrariedade quanto as premissas que autorizam o tratamento de dados pelo poder público. Deste modo, revelando-se como um ponto preocupante no contexto de proteção de dados, contrariando inclusive o princípio da precaução, o qual estabelece que diante de temas relacionados a proteção de dados, deve-se utilizar critérios conscientes a fim de garantir uma abordagem cautelosa.
  2. Concentração de dados pessoais sensíveis em uma única base de dados, sem a presença de um relatório de riscos. A construção de uma base de dados leva em conta diversos fatores para garantir sua segurança, dentre esses, a premissa de não manter um conjunto muito grande de dados sensíveis concentrados em um único banco, a fim de diminuir possíveis danos provenientes de uma futura invasão3. Somado a isso, a ausência de um relatório de risco da criação do referido Cadastro Base demonstra uma falta de comprometimento com os métodos estabelecidos pelo padrão ISSO 27007:20184, recepcionados e apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em seu Manual de Referência – Prevenção e mitigação de ameaças cibernéticas e confiança digital5.
  3. Inconformidade legal entre os conceitos utilizados no decreto e na LGPD, e não observância ao princípio da prevenção. A utilização de conceitos distintos entre o Decreto Presidencial e a Lei nº 13.709/18 demonstra a inobservância do poder público em seguir as determinações já estabelecidas, permitindo a interpretação extensiva e divergente daquela posta pela doutrina. Além disso, ao Incluir no Cadastro Base do Cidadão dados sensíveis biométricos, abre margem de utilização indevida desses dados associados ao aspecto genético dos indivíduos. Essa problemática situação é acentuada quando analisado o sistema em que tais dados estão inseridos, vez que citado cadastro associa como regra de identificação o CPF do titular, desconsiderando a anonimização prevista em lei.
  4. Criação do Comitê Central de Governança de Dados. Como visto no voto do Ministro Gilmar Mendes, as especificações acerca da estrutura do comitê proposto não são compatíveis com o regime democrático de direito, sendo necessário a reformulação das diretrizes de criação deste. Nesse sentido, se identifica a inconstitucionalidade do artigo 22 do decreto, o qual estabelecia como membros integrantes deste, dois representantes do Ministério da Economia, um da Casa Civil, um da Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção da Controladoria Geral da União, um da Secretaria Especial de Modernização do Estado da Secretaria-Geral da Presidência da República, um da Advocacia-Geral da União e um do Instituto Nacional do Seguro Social6. Além disso, complementa Ana Frazão acerca da decisão do relator de se estipular a previsão de responsabilização para os membros em artigo publicado no site “JOTA”, “reforçou o ministro Gilmar Mendes a necessidade de responsabilização dos agentes públicos infratores.”7

Por fim, não é possível afirmar que a decisão do STF em relação a ADI 6649 e a ADPF 695 seguiu a tradição mais protecionista que o tribunal vinha adotando em jurisprudências anteriores, como a proferida na ADI 63878 que estabeleceu inconstitucional o compartilhamento de dados entre companhias telefônicas e o IBGE. Desta forma, a autorização da implementação do Cadastro Base do Cidadão representa alguns riscos inerentes a atividade de tratamento de dados, potencializados pela grande concentração de conteúdo sensível e cruzamentos possíveis, abrindo margem para uma problemática utilização indevida desta base pelo poder público frente as genéricas e numerosas diretrizes de tratamento. Infere-se, portanto, que o desenvolvimento de mecanismos de alta vigilância estatal nunca encontram por si só a justificativa única do bem comum, mas trazem consigo a possibilidade do controle e a manutenção das massas.

1 BRASIL. Decreto nº 10.046, de 09 de outubro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10046.htm. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

2 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

3 BELLI, L; RAMOS, B. Políticas digitais no Brasil: acesso à internet, proteção de dados e regulação. Rio de Janeiro: FGV Repositório Digital, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/30688. Acesso em: 22 de outubro de 2022.

4 Método internacional de certificação para prevenção de ameaças cibernéticas.

5 Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwjo_9bijPz6AhVbrJUCHfhzBxkQFnoECB0QAQ&url=https%3A%2F%2Fwww.cnj.jus.br%2Fwp-content%2Fuploads%2F2021%2F03%2FAnexoVIIManualReferenciaPoliticaDeEducacaoCulturaSegurancaInformacaoRevisado-REV.docx.pdf&usg=AOvVaw1rwMoKHXppZCGK_Vg_LLKO

6 Incisos, I, II, III, IV e V do artigo 22 do decreto nº 10.046/ 2019

7 FRAZÃO, Ana. Compartilhamento de dados pelo poder público. JOTA, 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/compartilhamento-de-dados-pelo-poder-publico-12102022. Acesso em: 20 de outubro de 2022.

8 Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur436273/false

REFERÊNICAS:

BELLI, L; RAMOS, B. Políticas digitais no Brasil: acesso à internet, proteção de dados e regulação. Rio de Janeiro: FGV Repositório Digital, 2021. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/30688. Acesso em: 22 de outubro de 2022.

BRASIL. Decreto nº 10.046, de 09 de outubro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10046.htm. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 18 de outubro de 2022.

BRASIL. Manual de Referência – Política de Educação e Cultura em Segurança Cibernética do Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/03/AnexoVIIManualReferenciaPoliticaDeEducacaoCulturaSegurancaInformacaoRevisado-REV.docx.pdf. Acesso em: 21 de outubro de 2022.

BRASIL. STF valida compartilhamento de dados mediante requisitos. STF Notícias, Distrito Federal, 15, de outubro de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=494227&ori=1. Acesso em: 17 de outubro de 2022.

FRAZÃO, Ana. Compartilhamento de dados pelo poder público. JOTA, 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/compartilhamento-de-dados-pelo-poder-publico-12102022. Acesso em: 20 de outubro de 2022.

Para juiz, negar o holocausto não implica em ofensa ou inferiorização do povo judeu

Por Pablo Domingues

Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei” (ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 139)

Na obra acima citada, a filósofa judia Hannah Arendt conta sobre o julgamento de Adolf Eichmann, braço direito de Hitler e um dos principais responsáveis por operacionalizar o Holocausto nazista, pelo Tribunal de Nuremberg. Simbólico, no mínimo, iniciar este texto com um trecho ilustrando o que Arendt conceitua como “banalidade do mal”, já que Eichmann afirmava não passar de um homem que respeitava as leis e, portanto, seria inocente. Afinal, afirmava que eram ordens superiores de Hitler e não representavam sua vontade, simbolizado este fato em uma de suas frases de defesa “Eu não era um líder responsável, e, como tal, não me sinto culpado”.

Esta referência à obra da filósofa mostra-se apropriada para a reflexão técnica e crítica da decisão prolatada recentemente pela Justiça Federal nos autos da ação penal n.º 0809172-03.2020.4.05.8100, que absolveu acusado da prática de racismo, crime previsto no art. 20, §2º, da Lei Federal nº 7.716/1989. No caso, o acusado, em 14/03/2020, por meio de uma publicação na rede social Facebook, publicou texto revisionista sobre o holocausto. Dentre os dizeres, destaca-se o trecho em que o autor afirma: “Os judeus estão se vingando da civilização por terem sido escravos no Egito por 430 (Êxodo 12:40), daí terem escravizado a civilização usando o falacioso Holocausto para se vitimizar propagando que seis milhões de judeus teriam sido assassinados na Segunda Guerra, mas que não há uma só prova, pelo contrário, pois até intelectuais judeus negam esse evento fantasioso”.

A análise aqui empreendida respeita o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, assim como não se constitui em crítica pessoal ao magistrado, limitando-se à análise técnica dos fundamentos utilizados pelo juiz para absolver o réu na ação penal em questão, o que é feito a partir da consideração de que nenhuma decisão judicial, no Estado Democrático de Direito, é igualmente imune de críticas fundamentadas em aspectos técnicos.

Pois bem, a denúncia de racismo se motivou pelo revisionismo histórico apresentado pelo acusado em seu texto publicado no Facebook, de modo que o Ministério Público Federal sustentava, dentre várias razões (as quais subscrevo) que “a publicação do acusado subverte fatos históricos incontroversos com a clara intenção de desqualificar o povo judeu e acirrar ideias preconceituosas e discriminatórias (página 02 da sentença)”.

Como propriamente afirmado pelo juiz, que havia rejeitado a denúncia em um primeiro momento, decisão que fora revertida pelo Tribunal, a peça defensiva refletia “boa parte a posição deste juízo em relação à interpretação que deve ser dada à liberdade de expressão” (página 03 da sentença). Em um episódio não-muito-casual, o julgador fez das palavras da defesa suas para absolver o réu da prática a ele imputada.

Partindo de uma premissa de liberdade de expressão, que o juiz afirma existir neste caso, haveria “uma pessoa que pensa diferente de nós” (página 3 da sentença). O discurso de ódio seria um conceito impreciso que levaria uma punição da “violência simbólica”, conceito esse “também impreciso” (página 3 da sentença).

Como se depreende da decisão, o conceito de discurso de ódio é abstrato e impreciso, de modo que utilizá-lo com o pretexto de imputar fato delituoso representaria um risco à liberdade de expressão. Neste ponto, a decisão não faz menção a ressalvas ou eventual limitação, levando-se a pensar que, para o decisor nenhum discurso de ódio poderia ser punido. A proibição de discursos de ódio levaria, em último estágio, ao cerceamento do direito de se expressar livremente, impedindo que pessoas digam o que “[…] é belo e o que não é, o que é sensato e o que é insensato, o que é amor e o que é ódio” (página 3 da sentença).

Punir o discurso de ódio representaria, de alguma forma não muito bem explicada, impor “novos (e novos…) requisitos para exercício “adequado” da liberdade de expressão findará, é claro, por eliminá-la” (página 3 da sentença). Então, para salvaguardar a liberdade de expressão, a decisão é expressa no sentido de que “Não se pode naturalizar a censura ou se admitir a perseguição penal daqueles que pensam o oposto de nós” (página 3 da sentença). Este foi um dos fundamentos para absolver o acusado que, dentre várias alegações, afirmou ser o Holocausto nazista uma invenção histórica do povo judeu para “se vitimizar” perante o mundo e que “até intelectuais judeus negam esse evento fantasioso” (página 2 da sentença). Necessário pontuar que a materialidade e a autoria delitivas foram incontroversas, ou seja, é fato incontroverso que essas palavras foram escritas pelo réu na rede social Facebook.

Aqui faz-se necessária uma pausa para analisar os pontos até agora levantados da sentença. O magistrado qualifica o conceito de discurso de ódio como “abstrato”, afirmando que não seria possível a punição de uma “violência simbólica” sob pena de sacrificar-se o livre exercício da liberdade de expressão. Contudo, parece ignorar a doutrina produzida pelos/as juristas brasileiros/as sobre a temática.

No plano doutrinário, discurso de ódio se caracteriza como uma manifestação segregacionista, baseada na dicotomia superior (emissor) e inferior (atingido) e, como manifestação que é, passa a existir quando é dada a conhecer por outrem que não o próprio autor1. São discursos de incitamento ao ódio, representações simbólicas que expressam ódio, desprezo ou desrespeito a outra pessoa ou grupo2.

Apesar de a internet propiciarespaço propício para o exercício da liberdade de expressão, principalmente por meio dos sites de redes sociais, pois é nesse ambiente que as pessoas interagem com maior intensidade, mediante a criação de perfis e da participação em comunidades3, a decisão parece ignorar a construção empírica sobre a violência neste ambiente. Mais ainda, a doutrina especializada alerta sobre a propagação desses discursos de ódio na internet em razão da velocidade com que se propaga e a capacidade de disseminação e captação de ideias semelhantes no ambiente virtual.

Meyer-Pflug4 (2009, p. 97) conceitua o discurso de ódio propagado na internet como algo que “consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias”. Esses discursos teriam a finalidade deliberada de desqualificar e inferiorizar um grupo de pessoas, cuja dignidade se vê aviltada pelo emissor. Assim, surge o ódio como forma de expressão do indivíduo por meio da internet5.

O caso dos autos é o exemplo clássico que a literatura especializada dá ao discurso de ódio. Não somente o réu propôs uma teoria absurda negacionista (perdão pelo pleonasmo), mas também atribuiu ao povo judeu a responsabilidade pela disseminação (e invenção!) da epidemia de gripe suína (H1N1) e da epidemia da Peste Negra na Idade Média. Beira ao delírio acreditar que alguém escrevendo essas acusações é pessoa afeita ao povo judeu. Beira o absurdo (tudo neste caso beira o absurdo) querer acreditar que o réu não possui nenhum preconceito, ódio ou ressentimento com o povo judeu. Disfarçado de um discurso conspiracionista, na realidade, o que fez o réu foi vilipendiar a memória do povo judeu ao indicar que o Holocausto nunca teria ocorrido e, pior, atacar a coletividade do povo judeu ao atribuir a eles a criação de duas epidemias responsáveis por incontáveis mortes.

Não à toa o estudo do discurso de ódio tem caminhado no sentido de explicar que essa prática discursiva não se resta configurada apenas quando há um ataque direto a uma pessoa, com ofensas direcionadas e ela utilizando-se de seu gênero, raça, procedência nacional ou outra característica essencial à pessoa. Entende-se por discurso de ódio velado aquele que dissemina o ódio, a opressão, o desprezo a um grupo de pessoas identificados por uma característica que as une (neste caso a característica é ser judeu), utilizando-se desse traço identitário para promover o ódio, a inferiorização e a opressão. Mesmo que no Brasil não haja uma tradição antissemita, não é novidade (ou não deveria ser afinal até isso é questionado no caso) a opressão vivida por este povo durante o regime Nazista de Hitler.

O discurso de ódio velado mostra-se, neste caso especialmente, como mais nocivo porque propõe normalizar o absurdo. É vestido de uma linguagem supostamente científica, polida, por vezes valendo-se de argumentos muito pessoais como opinião ou religião, o que causa no indivíduo ou grupo ofendido a dificuldade na identificação dessa violência já que fantasiada de uma mera opinião pessoal, supostamente protegida pela liberdade de expressão. E é por isso que essa forma de discurso de ódio deve receber especial atenção, sobretudo do Estado.

Mas não é somente a naturalização da violência que causa espanto na referida decisão, como também a exceção à prática forense do processo penal, quando o juiz faz das palavras da defesa suas. Dentre os trechos selecionados pelo magistrado, destaca-se aquele com teor mais perigoso por revelar elevadíssimo tom de negacionismo histórico e científico, além de minimizar a memória sobre as mais de 6 milhões de vidas perdidas durante o Holocausto nazista:

16. A priori, teorias revisionistas do holocausto, por si só, não implicam necessariamente em ofensa ou inferiorização do povo judeu, mas apenas na negação de um fato histórico, assim como há quem negue que o homem foi à Lua (página 04 da sentença)

Compara-se a negação da morte de milhões de judeus nos campos de concentração com a negativa de que o homem (sic) esteve à lua. Por meio de uma falácia de falsa simetria o magistrado, ao invocar as palavras da defesa, endossa-as, como mesmo disse.

Endossa não somente a absolvição e não a faz do ponto de vista técnico, mas endossa a minimização do que o discurso de ódio representa e, nessa esteira, vilipendia a memória das vítimas do Nazismo e de seus familiares. Transforma aquela que foi uma das maiores produções de ódio, marcada pela morte, pelo sequestro, pelo apagamento, em um simples “concordo ou discordo”.

Analisando-se a sentença é possível perceber a clara assunção dos argumentos do réu como fundamento para a decisão, o que é no mínimo estranho. Em outra passagem (página 03 da sentença) chama a atenção a expressão utilizada no início do parágrafo onde se encontra a expressão “A meu ver…” para fundamentar a decisão que, ao final, declara a absolvição do acusado por fato atípico, pela conduta a ele imputada não constituir crime, especialmente de racismo. Tal expressão denuncia que o julgador julga “de acordo com sua consciência” e com suas ideologias, o que é perigoso e antidemocrático, pois ao fazer a denúncia o Ministério Público Federal não buscava “a opinião pessoal do juiz”. Ao contrário, não se quer a opinião da pessoa-juiz, mas sim o posicionamento do Estado-juiz que, em um Estado Democrático de Direito, deve ser de acordo com a lei, não com opiniões pessoais.

Acolhendo e reproduzindo literalmente argumentos do réu, a sentença é no sentido de não ter se caracterizado o delito previsto no art. 20, §2º, da Lei Federal nº 7.716/1989, por não preenchimento dos requisitos do tipo penal, sobretudo porque não restou demonstrada, na conduta do réu, “autêntica intenção de dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente. Contudo, tais requisitos mencionados na decisão sequer existem no tipo penal em questão, que prevê os seguintes verbos para a caracterização do delito:  Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

O que há é o uso de requisitos não previstos em lei, seja no tipo penal, seja nos princípios gerais de direito penal, para buscar uma absolvição que reflete não uma opção jurídica, mas crenças pessoais (A meu ver…) e quiçá posições ideológicas que fogem ao debate técnico do tema e contrariam posicionamento anterior do Supremo Tribunal Federal (STF) em caso similar. O posicionamento adotado pelo STF no HC 82424/RS (Caso Ellwanger) não é ignorado pelo decisor, que inclusive a menciona. Naquele caso, a Suprema Corte debateu os limites de significado da palavra “racismo” e a suposta colisão, de dois direitos fundamentais: liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana. Contudo, apesar da solução constitucionalmente correta no caso, a resposta era bem simples, assim como neste caso.

Não cabia à Suprema Corte, e nem ao juiz deste caso, discutir a presença, ou não, do direito à liberdade de expressão, nem a ponderação entre os direitos fundamentais de dignidade da pessoa humana e liberdade de expressão. A questão era se a conduta de Ellwanger, e consequentemente do réu do processo ora em análise, era, ou não, típica, antijurídica e o agente era culpável, requisitos adotados pela legislação brasileira para imputar a alguém a prática de crime. Não se trata de uma colisão entre valores em que há necessidade de sopesar qual direito deve ser tolhido em detrimento do outro6. Como pode uma conduta, no caso em concreto, ser lícita e ilícita ao mesmo tempo, a depender de qual direito fundamental será “preterido”?

Essas provocações demonstram que a invocação da liberdade de expressão como escudo à coibição e punição de discursos de ódio não encontra qualquer respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. Veja-se que a própria Constituição Federal de 1988 prevê, em seu artigo 5º, inciso XLII, a previsão do crime de racismo, destacando seu caráter especial por ser inafiançável. Mais ainda, o artigo 20 da Lei 7.716/89 descreve a conduta de discurso de ódio racista, apesar de não denominá-lo como tal.

Em outras partes da legislação brasileira, a liberdade de expressão já foi previamente preterida em prol da proteção de outros direitos. Essa é relativizada pela própria Constituição Federal, a exemplo: a vedação ao anonimato (art. 5º, inciso IV); proteção e o respeito do direito de resposta, proporcional ao agravo (art. 5º, inciso V); inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem (Art. 5º, inciso X), dentre outros. No plano infraconstitucional, além da Lei de Racismo, ignorada neste caso, há os crimes de injúria, calúnia e difamação (artigos 140, 138 e 139 do Código Penal, respectivamente) como alguns exemplos de situações em que a liberdade de expressão pode constituir um abuso de direito fundamental e, por consequência, ser aplicada uma punição (penal ou não).

É preciso dizer que negar as mortes do Holocausto não é o mesmo que negar que o céu é azul ou que no mar há água. Todos os exemplos são fatos comprovados, mas apenas um deles toca na memória coletiva de um povo, de uma nação.

A negação de fatos científicos tem se tornado demasiadamente comum nos tempos em que vivemos. Nega-se a ciência, nega-se a morte, negam-se os fatos históricos e, com isso, criam-se comunidades de adeptos de teorias estapafúrdias que, como visto, não se restringem a opiniões de internet. Chegam ao mundo real, físico (ocupam lugares no Poder Judiciário) e quando o fazem, é com violência física, morte e opressão.

Não se trata, portanto, de uma violência simbólica como mencionado na decisão: pelo contrário, é a pedra de toque de uma violência que chega à esfera física e da intimidade do indivíduo. Mais ainda, contribui para a manutenção de um ideário político e social que tem na negação da existência das opressões sua pedra fundante. Nega-se o racismo, nega-se a homotransfobia, nega-se a misoginia, nega-se o antissemitismo e, no final, negam-se as mortes causadas por esses fatores. Mortes essas que são reduzidas a estatísticas, números que serão contados nos cadernos da história.

A mensagem passada pela decisão não é só uma manifestação isolada, é o posicionamento do Estado-juiz dando uma mensagem de desesperança à população que sofre na pele diariamente as chagas da opressão social. É dizer: aqui vocês não serão compreendidos e suas dores não serão reconhecidas.

Referências:

1 SILVA, Rosane Leal da; NICHEL, Andressa; MARTINS, Anna Clara Lehmann; BORCHADT, Carlise Kolbe. Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira. Revista Direito GV. São Paulo, n. 7, p. 445-468, jul/dez, 2011, p. 447. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v7n2/a04v7n2.pdf. Acesso em: 06 abr. 2021

2 TASSINARI, Clarissa; JACOB DE MENEZES NETO, Elias. Liberdade de expressão e Hate Speeches: as influências da jurisprudência dos valores e as consequências da ponderação de princípios no julgamento do caso Ellwanger. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 9, n. 2, p. 7-37, jan. 2014, p. 19. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/461. Acesso em: 16 jun. 2021

3 SILVA, Rosane Leal da; BOLSON DALLA FAVERA, Rafaela. Estudo do caso Klayman v. Zuckerberg and facebook: da liberdade de expressão ao discurso do ódio/Study of the case klayman v. zuckerberg and facebook: from freedom of speech to hate speech. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 13, n. 2, p. 273-292, ago. 2017, p. 275. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/923/1221. Acesso em: 16 jun. 2021

4 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 97

5 STEIN, Marluci; NODARI, Cristine Hermann; SALVAGNI, Julice. Disseminação do ódio nas mídias sociais, análise da atuação do social media. INTERAÇÕES. Campo Grande, v. 19, n. 1, p. 43-59, jan./mar. 2018, p. 47. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/inter/v19n1/1518- 7012-inter-19-01-0043.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021

6 TASSINARI, Clarissa; JACOB DE MENEZES NETO, Elias. Liberdade de expressão e Hate Speeches: as influências da jurisprudência dos valores e as consequências da ponderação de princípios no julgamento do caso Ellwanger. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 9, n. 2, p. 7-37, jan. 2014, p. 26. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/461. Acesso em: 16 jun. 2021

JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA E COMENTADA 35

Por Ane Cristine Much Smolski

Dando seguimento às pesquisas do Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet, projeto realizado pelo Núcleo de Direito Informacional (NUDI) da UFSM, importa destacar o levantamento realizado junto ao TJ-RS no mês de abril de 2021.

Utilizando-se a palavra-chave “racismo” em pesquisa jurisprudencial no site do Tribunal supracitado, foram encontrados 487 (quatrocentos e oitenta e sete) resultados. Dentre estes, considerando o recorte de discurso de ódio na internet no ano de 2020, mapeou-se um acórdão. 

Acerca do julgado selecionado para esta análise, trata-se de apelação-crime de 2020 julgada pela 8° Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que se verificou a ocorrência de discurso de ódio direcionado aos nordestinos através de postagem no Facebook

O Ministério Público ofereceu denúncia contra o réu M.L.S.S. como incurso nas sanções do artigo 20, §2º, da Lei n.º 7.716/89, porquanto ele publicou em seu perfil de rede social as seguintes frases: “O primeiro nordestino da sub raça q aparecer la em casa vendendo rede vai toma uma tunda de relho. Gnt nojenta, vocês são a escória do país” e “1% de diferença só vem a mostrar que nem a sub raça nordestina esta contente! Dilma, pede para sair ou o impachimente te pega”. 

A denúncia foi recebida em 17/02/2016 e o réu sustentou ter apenas replicado comentário realizado por um ex-Presidente da República, excluindo a postagem após alguns minutos. 

Ocorreu sentença condenatória em 25/06/2019. O pleito teve julgamento procedente, condenando o réu à pena de 2 anos de reclusão em regime aberto e multa de 10 dias-multa. Contudo, substituiu-se a pena restritiva de liberdade pela restritiva de direitos e foi concedido ao réu o direito de apelar em liberdade. 

Dentre os fundamentos expostos na sentença, cita-se: 

Não é possível confundir a conduta de M. com o exercício do direito fundamental constitucional da liberdade de expressão, eis que tal garantia não é absoluta em decorrência da existência de limites morais e jurídicos. 

[…] 

In casu, M. infringiu os limites morais e jurídicos, uma vez que efetuou publicações discriminatórias/preconceituosas na internet (limite moral), sendo que tal conduta se amolda a uma descrição típica (limite jurídico). (ocultamos o nome do réu)

Insatisfeita, a parte ré interpôs apelação alegando atipicidade do fato e ausência de dolo. Subsidiariamente, pediu pela desclassificação para o delito de injúria, reconhecimento da decadência do direito e da extinção da punibilidade pela prescrição. 

Apesar dos argumentos suscitados pelo apelante M.L.S.S., os Desembargadores negaram provimento ao recurso, seguindo o voto da Relatora Des.ª  Fabianne Breton Baisch. 

Em suma, analisou-se a preliminar de prescrição da pretensão punitiva do Estado pela pena in concreto, não se verificando sua incidência no caso – conforme o art. 109, inciso V; art. 114, inciso II e art. 109 § único, todos do Código Penal. 

Da mesma forma, confirmou-se a responsabilidade penal, visto que o réu admitiu a autoria do delito em interrogatório. O argumento de ter sido uma publicação para repercutir declarações prestadas por ex-Presidente da República foi considerado incabível, dado o teor pejorativo utilizado nas postagens. Bem como não se cogitou estado anímico alterado em razão de época de disputas políticas, pois as frases foram proferidas fora de qualquer discussão acalorada. 

Examinou-se, ainda, o embate entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio. Para tanto, a Relatora destacou que tal direito, garantido constitucionalmente e exposto na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, não é absoluto. Considerou necessário avaliar a intenção do agente de praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação racial ou se foi ato relacionado à emissão de opinião legítima com amparo no direito à liberdade de expressão, concluindo, in verbis

[…] a conduta adotada pelo apelante possuía claro conteúdo preconceituoso e discriminatório contra todo o grupo de cidadãos brasileiros, de origem nordestina, por intermédio de meio de comunicação, o que não pode ser tido como conduta atípica.

Por fim, rejeitou a possibilidade de ser reconhecido o crime de injúria racial, dado que o delito de injúria corresponde em ofensa subjetiva dirigida à pessoa determinada, valendo-se do preconceito. Em contrapartida, o crime tipificado no art. 20, caput, da Lei nº 7.716/89, é mais abrangente, sendo conduta direcionada contra uma coletividade indeterminada de indivíduos – condizente com o ato praticado pelo réu em sua rede social. 

Neste sentido, votou negando provimento à apelação, acompanhada pelos demais Desembargadores. 

Compulsando-se o julgado, perceptível a utilização majoritária de jurisprudências do próprio TJ-RS e do Superior Tribunal de Justiça, juntamente com a legislação pátria, para o embasamento jurídico da decisão. Inocorreu qualquer análise aprofundada da temática “discurso de ódio”, sendo citado tal termo apenas durante a apresentação de entendimentos dos Tribunais. 

Entretanto, é inegável a importância da decisão exarada. Ao negarem provimento ao recurso, os Desembargadores agiram em conformidade com o entendimento de que a liberdade de expressão não deve ser utilizada para mascarar a torpeza e o preconceito, principalmente quando manifestados na internet em forma de postagens “inofensivas”. 

A permissividade, nesse caso, serviria para trazer maiores prejuízos aos grupos considerados minoritários, atingindo-os diretamente e corroborando com o ataque aos Direitos Humanos. 

Inteiro teor: https://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?numero_processo=70082569435&ano=2020&codigo=794109

Jurisprudência selecionada e comentada 34

Por Mariana Moura

Após termos apresentado uma apelação criminal e uma apelação cível do TRF-3 do ano de 2020, hoje o NUDI dá continuidade ao exame dos julgados constantes do site do relativo tribunal que possuem em sua ementa a expressão “discurso de ódio”. A jurisprudência em apreço nesta data é uma apelação cível do ano de 2019.

Conforme citado nas Jurisprudências selecionadas e comentadas 32 e 33, nos dois casos do TRF-3 recentemente analisados foi reconhecido pelos desembargadores federais a ocorrência do discurso de ódio. A jurisprudência nº 33 abordava o preconceito e a discriminação social contra nordestinos, ao passo em que a jurisprudência nº 32 tratava de manifestações odiosas contra indígenas.

O julgado sobre o qual se debruça hoje, assim como o de nº 32, também é uma apelação cível em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso do Sul (MS), em que se pleiteia a condenação do ofensor pelo cometimento de dano moral coletivo. Os dois casos guardam extrema relação, à medida em que ambos tratam sobre discurso de ódio contra indígenas, mais precisamente, contra a comunidade dos Guarani-Kaiowá, que é nativa do relativo Estado.

No caso anteriormente analisado, a sentença não havia entendido pela ocorrência do discurso de ódio, tendo a 1ª Turma do TRF-3, após recurso do MPF, reformado a decisão para o fim de reconhecer o caráter odioso do discurso e condenar o ofensor ao pagamento de dano moral coletivo. Ocorre que, de modo totalmente contrário, neste julgado a sentença reconheceu o discurso de ódio, tendo a 2ª Turma do TRF-3, com a apelação do condenado, reformado a decisão, por três votos a dois, para o fim de julgar o feito improcedente, entendendo que as manifestações proferidas estariam revestidas sob o crivo da liberdade de expressão.

No caso em questão, o que gerou o ajuizamento de ação civil pública contra o réu foi o fato de ele haver divulgado o seguinte texto em determinado jornal, do qual se destacam as principais falas, no qual expressa sua opinião com relação aos indígenas Guarani-Kaiowá:

Guarani Kaiowá é o c … Meu nome agora é Enéas p …

Tem coisa mais chata, hipócrita, brega e programa de índio que este pessoal do Facebook adotando o nome Guarani Kaiowá? Gente cuja relação com o verde se resume à alface do McDonald’s … Mais ou tão

Uma dessas chatas do Facebook reclamou da minha gozação dizendo que todo brasileiro é guarani kaiowá. Eu não! Nunca nem ouvi falar e, se é pra escolher, prefiro descender dos tapaxotas ou tapaxanas. Mas bom mesmo é de destapar…

Guarani, só meu time em Campinas, campeão brasileiro de 1978.

Como diriam o Marechal Rondon e os irmãos Villas Boas, “Índio bom é índio morto”! “Matar, se preciso for, morrer, nunca!”.

Tudo em São Paulo tem nome de índio. Consciência pesada dos bandeirantes: Anhanguera, Ibirapuera, Canindé, Aricanduva, Morumbi, Jabaquara, Tucuruvi, Tatuapé e agora Haddad, da tribo dos Ali Babás … Ô raça!

[…] Outra paulistana, aquela maconheira da Rita Lee, tem até modinha cantando: “Se Deus quiser, um dia eu quero ser índio, viver pelado, pintado de verde, num eterno domingo, ser um bicho preguiça, espantar turista e tomar banho de sol …”.

Credo! Fico pelado só para fins de reprodução, odeio domingo, preguiça é pecado; sou viajante (turista, gosto nem de ver) e banho de sol, repito, é coisa pra petista.

[…] E chamar índio de preguiçoso é preconceito, ignorância histórica. Índio é correligionário do ócio criativo … Ou, simplesmente do ócio, pronto.

[…] Quando Darwin, Lévi-Strauss e Diogo Mainardi descobriram o Brasil, tiraram várias conclusões sobre os guaranis kaiowá, um povo pescador de baiacus, que captura borboletas, retalha suas asas e coloca-as em cinzeiros de vidro para espantar, melhor, para vender aos turistas.

[…] Além de incestuosos, trocam os filhos por um reles anzol. Por isso, o Brasil é assim, uma mistura de índios flatulentos com criminosos portugueses …

Andam nus, exibindo suas vergonhas; os homens portam nem mesmo um estojo peniano. As mulheres são libidinosas e se vão com qualquer um. As moças tomam banhos coletivos, fazem suas necessidades nas moitas, fumam juntas e entregam-se a brincadeiras de gosto duvidoso, como cuspir uma na cara da outra.

PS: A vadiagem dos guaranis kaiowá pelo menos é lucrativa. Ontem, troquei um canivete suíço (falso) por várias toras de mogno de sua reserva.

Diante de todas essas manifestações, como mencionado, três julgadores equivocadamente não reconheceram o discurso de ódio, entendendo, por conseguinte, pela não ocorrência do dano moral coletivo. Com apoio nos incisos IV e IX do art. 5º, bem como no art. 220, caput e § 2º, ambos da Constituição Federal, o relator da decisão destacou a importância da liberdade de manifestação do pensamento e da liberdade de expressão da atividade de comunicação, sem necessidade de licença, bem como a vedação pelo ordenamento jurídico brasileiro à censura de natureza política, ideológica ou artística.

Nessa mesma linha, concluiu o relator que a manifestação do apelante operou no exercício do poder de criticar, o que, por vezes, envolve “a construção de um discurso mediante palavras e expressões não aprazíveis, afáveis ou lhanas”. Pontuou, a respeito disso, que “não é papel do direito tutelar o bom gosto, a falta de graça ou o acerto ou erro da manifestação do pensamento.” e sim proteger a manifestação do pensamento. Mais além, disse que

É preciso distinguir, nesse ponto, a configuração do chamado discurso de ódio da manifestação do pensamento em geral. O que faz um divergir do outro é o animus, a intenção do emissor da expressão: quem discursa de ódio discursa para conclamar, dolosamente, à lesão; fala com o propósito de fazer açoite, de ver o outro em lanhos. Quem manifesta o pensamento quer apenas fazer a sua ideia ressoar; quem discursa de ódio quer apenas fazer o outro sofrer.

Assim, disse não haver nos autos qualquer demonstração de que o réu pudesse ter intenção destrutiva na veiculação do texto, afirmando ter restado provado que ele é autor satírico, escreve com ironia, o que seria questão de estilo, não de espírito. Concluiu que, muito embora tenha o autor veiculado críticas suas aos valores ou esquema social da comunidade indígena, em nenhum momento pregou o ódio ou conclamou a agressão dos membros da coletividade criticada, razão pela qual não restou caracterizado excesso.

Não obstante a fundamentação da decisão, observa-se nítido o seu equívoco. É evidente que não se trata meramente de uma manifestação ordinária do pensamento, apenas de “mau gosto”, não aprazível, como citou o relator.

O fato de ter índole satírica, como arguido por ele para afastar a configuração do dano moral coletivo, não retira o caráter odiento do texto e a nítida intenção do apelante de proclamar o preconceito, a intolerância, o ódio e o menosprezo à comunidade indígena ofendida. Na passagem em que o autor diz “Índio bom é índio morto!” e faz uma paráfrase sarcástica com o famoso lema de Marechal Cândido Rondon – explorador, pacificador e geógrafo que atuou na defesa dos indígenas – “Morrer, se preciso for, matar nunca!” –, substituindo-o por “Matar, se preciso for, morrer nunca!”, fica clara sua ideia de incentivar o ódio à comunidade e sugerir a morte dos indígenas.

Nessa linha, verifica-se que ele, embora tente se utilizar de linguagem satírica para ficar no limite do que seria a liberdade de expressão, acaba, sem dúvidas, incorrendo na propagação do preconceito e na incitação da violência. Desse modo, não se pode cogitar da ausência de animus de ofender, sendo evidente o equívoco da decisão.

O réu praticou discurso de ódio à medida em que foi além do mero exercício de seu direito de expressar, provocando evidente lesão a uma coletividade que, desde a formação da sociedade brasileira, tem seus direitos de dignidade e, mais ainda, de existência, violados. Nota-se, nesse sentido, que a ação foi voltada à obtenção do dano moral coletivo justamente em razão de as ofensas terem sido proferidas contra os membros da comunidade Guarani-kaiowá como um todo, o que se depreende das passagens supracitadas do texto do autor, como também desta:

Protérvia ignara! Os guaranis kaiowá não passam de recolhedores de mel no meio do mato. É o povo mais primitivo do mundo, nem chegou à Idade da Pedra. Petistas “avant la lettre”! Comem cupim. Intimidam até malária! Pigmeus, parecem formigas gigantes e caracterizam-se pela insuportável pneumatose intestinal, o que faz deles companhia deveras desagradável.

O desprezo, vê-se, não é direcionado a um indivíduo, mas ao grupo menosprezado, o que é característico do discurso de ódio. Assim, foi extremamente acertado o contraponto apresentado pela juíza federal convocada que proferiu voto divergente. Disse ela que a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, embora sejam constitucionalmente asseguradas, não são absolutas, devendo ser exercitadas com consciência e responsabilidade, obedecendo a outros valores.

Nesse ponto, destacou que, assim como estas, também estão previstos nos incisos do art. 5º da Constituição os direitos à inviolabilidade da honra e da imagem e a garantia de indenização em caso de violação destas, além do o direito de resposta. A partir disso, concluiu ter havido no caso em apreço abuso no exercício da liberdade de expressão, pois houve o emprego de expressões injuriosas, afrontando a honra e a imagem da etnia Guarani-Kaiowá, sem qualquer compromisso ético com a informação.

O desembargador que também divergiu do relator reiterou a existência de limites à liberdade de expressão, destacando que tais restrições estão previstas em diplomas internacionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Transcrevendo um dos trechos do texto do réu, afirmou que as manifestações não se afiguram meras críticas, possuindo a intenção de atingirem a imagem da comunidade indígena.

Disse também que, diferentemente do que entenderam a maioria dos julgadores, há nítida intenção por parte do recorrente de transmitir ideias preconceituosas e de ódio étnico. Destarte, aduziu que

As manifestações acima explicitadas demonstram a intolerância, calcadas em declarações nitidamente discriminatórias, vulnerando o direito à igualdade e promovendo diminuição dos integrantes da comunidade indígena citada, sem sombra de dúvida. As expressões transcritas (“hate speech”) objetivam a negação da igualdade entre os seres humanos, promove discriminação e propagam a inferioridade de determinado grupo, o que não pode mais ser aceito, afastando-se em muito de meras críticas ácidas. O discurso de ódio tem o condão de difundir estereótipos irracionais – ou não é o que faz o texto – e depreciativos contra grupos minoritários, passível de provocar erosão de reconhecimento recíproco de igualdade entre sujeitos culturalmente distintos que compõe a esfera pública. Destilar ódio contra minorias infelizmente parece ser um vezo difícil de erradicar do país, nada contribuindo para o aperfeiçoamento da nação. Tudo ou todos que são diferentes acabam sendo ou excluídos ou sofrendo preconceito de quem se pretende “normal”.

A partir disso, vê-se que o posicionamento dos julgadores a respeito do discurso de ódio não foi uníssono, sendo mais adequado o daqueles dois que apresentaram voto divergente, demonstrando a necessidade de balizas ao exercício do direito de expor livremente suas ideias, que não pode ser incondicionado. Nota-se que, tendo como finalidade precípua o intuito humorístico ou não – o que não exclui a configuração do discurso de ódio –, houve clara intenção por parte do apelante de promover a discriminação conta os Guarani-Kaiowá.

Assim, conclui-se que o julgado em comento, ao reformar a decisão e garantir a impunidade do réu pela perpetração de manifestações odiosas contra as indígenas foi na contramão das duas decisões do TRF-3 anteriormente analisadas a respeito da temática. O desejo que fica é o de que decisões como essa passem a ser cada vez mais raras, de modo que a incidência do discurso de ódio, quando ocorrer, possa ser reconhecida, como forma de legitimar o sofrimento dos grupos oprimidos e, mais além, garantir o seu respeito e a dignidade.

JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA E COMENTADA 33

Por Mariana Moreira Moura

Prosseguindo na análise da jurisprudência brasileira no que diz respeito ao tratamento dispensado a temas relacionados ao discurso de ódio, mais precisamente no apreço dos julgados do TRF-3, o NUDI traz, nesta data, o exame de uma apelação criminal do relativo tribunal. Como referido na Jurisprudência selecionada e comentada 32, ao utilizar a expressão “discurso de ódio” nos mecanismos de pesquisa jurisprudencial do site do TRF-3, foram encontrados apenas três julgados.

Dentre eles, vê-se existirem duas apelações cíveis, uma de 2019 e uma de 2020 – havendo sido a última apreciada naquela oportunidade – e uma apelação criminal de 2020, que será examinada agora. Nota-se que os dados numéricos já indicam, em um primeiro lugar, que a temática não é muito abordada pelo relativo tribunal. De outro lado, também demonstram que, mais recentemente, ainda que de modo excepcional, o assunto vem sendo abordado – tanto no âmbito cível, quanto no penal – em contrapartida ao que ocorria em anos anteriores.

A decisão em tela, julgada em 12/03/2020, trata da ocorrência de discurso de ódio de caráter racial, mais precisamente, decorrente da prática ou incitação de discriminação ou preconceito de procedência nacional. O réu, no relativo processo, foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) pelo cometimento do delito de racismo qualificado pelo fato de este haver sido cometido por intermédio dos meios de comunicação social, previsto no art. 20, § 2º, da Lei n.º 7.716/89.

Na ocasião dos fatos, conforme consta da denúncia, L.V.A teria, por intermédio da conta do Twitter de seu amigo, proferido comentários preconceituosos e discriminatórios contra nordestinos. Em suas publicações, ele teria dito:

Continue votando no PT e ajude os papais nordestinos a estuprar suas filhas para conseguir bolsa natalidade no valor de 1500,00 ;).

Necessitamos de Brasul x Branorte, Viver carregando estados que cagam e andam pro país não rola. Ou haver SãSul. Não merecemos lixo!

BAIANADA IMUNDA! Não VENHAM DAÍ PRA PEDIR EMPREGO EM SAMPA. BANDO DE BOSTAS.

DEPOIS QUE A GENTE FALA QUE NORDESTE É A BOSTA QUE ATRASA NO. O BRASIL, AINDA ACHAM RUIM [sic]

Em vista de tais manifestações por ele proferidas, a denúncia narra a existência, na conduta do réu, de “inegável conteúdo preconceituoso e discriminatório, inclusive com menção à segregação de nordestinos, além da utilização de termos chulos e degradantes”. A peça do Ministério Público citou, ainda, ter restado claro o incentivo e a sugestão de segregação dos nordestinos.

O Juízo de primeiro grau, após instrução do feito, condenou o réu como incurso nas sanções pelas quais foi denunciado. Este, então, apelou, alegando inexistência de dolo específico na conduta do agente.

O desembargador que apreciou o recurso, provendo-o apenas para a redução da pena de prestação pecuniária, negou o pedido absolutório do réu. Embora sem adentrar em profundas discussões sobre a temática, citou em seu voto que as manifestações do acusado ingressaram na esfera do discurso de ódio. Assim, afirmou:

Nesse contexto, o próprio agir reiterado e extremamente agressivo (do ponto de vista do uso das palavras) do réu elimina qualquer dúvida a respeito do elemento subjetivo que envolvia a conduta, a qual escapou por completo ao âmbito lícito da crítica política assertiva ou da reação forte, ingressando no terreno ilícito da propagação de discurso de ódio e menosprezo voltado contra vasta parcela de seus compatriotas pelo tão-só fato de parte deles adotar opção eleitoral não partilhada por ele, o que configura inequivocamente o dolo de praticar conduta amoldada ao tipo penal pelo qual foi denunciado e condenado em primeiro grau.

Nota-se que, em que pese não tenha identificado exatamente os elementos do caso concreto que fazem com que a conduta do réu seja caracterizada como discurso de ódio, o desembargador federal reconheceu o caráter odiento da manifestação. A fundamentação é acertada à medida em que se verifica que o acusado proferiu nítida manifestação segregacionista.

Constata-se do excerto supracitado que o réu sugeriu a separação do Brasil em parte sul e norte, defendendo que os estados do nordeste não só não contribuem para o desenvolvimento do país, como também promovem o seu atraso. Dessa forma, há evidente incitação de ódio contra as pessoas originárias de tal região.

Além disso, seus depoimentos visam a ofender, atingir, desqualificar, discriminar e gerar preconceito contra nordestinos, ao utilizar os termos “lixo”, “BAIANADA IMUNDA” e “BANDO DE BOSTAS” para se referir aos indivíduos lá nascidos, bem como citar que “os papais nordestinos a estuprar suas filhas para conseguir bolsa natalidade”.

Observa-se que o discurso não é voltado contra um sujeito em específico, como ocorre nos casos de injúria racial, em que o elemento raça é utilizado como forma de ofender determinada pessoa, lesando sua honra. Do contrário, vê-se, no caso em tela, que o réu, baseado em um sentimento de superioridade, por ser oriundo da região sudeste do país, sente-se autorizado a inferiorizar os nordestinos, entendidos como minoria qualitativa dentro do Brasil, sendo comumente alvo de preconceito.

O fato de a manifestação ter sido proferida de forma escrita não descaracteriza a ocorrência de discurso de ódio, que não se limita às expressões orais. A circunstância de haver sido veiculado em rede social apenas contribui para tornar o caso ainda mais grave, à medida em que possibilita o alcance de um maior número de receptores da mensagem.

Ainda, vê-se que, embora sem haver consignado de forma expressa, o julgador reconheceu que, no caso levado à sua apreciação, foram extrapolados os limites da liberdade de expressão, vez que foi lesada de forma inequívoca a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade dos nordestinos.

Diante disso, duas são as conclusões tiradas do caso. A primeira é que o desembargador federal do TRF-3, de maneira acertada, reconheceu a ocorrência do discurso de ódio como categoria jurídica autônoma, ainda que não prevista expressamente em lei, mas incidente nas condutas do delito de racismo. A segunda é que, não obstante tenha havido o importante reconhecimento dessa modalidade de discurso, foi superficial a abordagem do assunto, sendo nítido que o julgador poderia melhor explorar a temática.

O NUDI mantém-se firme na promoção da popularização do conhecimento sobre a temática do discurso de ódio, bem como na divulgação do tratamento que vem sendo dispensado pelo Poder Judiciário brasileiro à matéria. Acompanhe os próximos julgados que serão apresentados na sequência.

JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA E COMENTADA 32

Por Mariana Moreira Moura

Na continuidade dos trabalhos desenvolvidos pelo NUDI – UFSM na pesquisa de julgados dos tribunais brasileiros acerca da temática do discurso de ódio, dentro do Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet, cumpre trazer ao enfoque dos leitores, hoje, uma decisão do TRF3, a fim de contribuir para elucidar de que maneira o Poder Judiciário vem enfrentando a temática.

Em pesquisa livre de jurisprudência realizada no site do aludido tribunal, que atende aos Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, utilizando a expressão “discurso de ódio”, foram encontrados três julgados, sendo eles duas apelações cíveis, uma de 2019 e outra de 2020, e uma apelação criminal, de 2020.

A jurisprudência selecionada para comentário nesta ocasião foi a apelação cível de 2020, julgada pela 1º Turma do TRF3 em 12/05/2020, que tratou sobre o discurso de ódio contra indígenas. O caso é oriundo de uma ação civil pública ajuizada no Mato Grosso do Sul pelo Ministério Público Federal (MPF), em decorrência da produção e veiculação, por parte de R.P.B, de curta-metragem de conteúdo atentatório à comunidade indígena Guarani-Kaiowá.

Por meio da ação, a instituição pleiteou a condenação do requerido ao pagamento de compensação pecuniária por danos morais coletivos, no valor de R$ 100.000,00, a ser recolhida ao Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados (art. 13, da Lei 7.347/85). Além disso, requereu o MPF que fosse determinada a reversão, também em favor do relativo Fundo, do montante angariado com os ingressos vendidos para futuras e eventuais apresentações do filme discriminatório.

Segundo se depreende do inteiro teor do julgado, o réu teria produzido um filme intitulado “Matem… Os Outros!”, no qual quatro personagens travam diálogos em que expõem os sentimentos e perspectivas de produtores rurais da região em relação aos conflitos envolvendo índios situados no MS e em outros Estados, bem como com relação aos costumes, modo de vida e questões relacionadas aos direitos e à cultura da comunidade indígena.

Em sentença, o pleito ministerial foi julgado improcedente, havendo o juiz federal considerado que a obra produzida pelo réu não excedeu os limites do regular exercício do direito à liberdade de expressão. O MPF, então, interpôs recurso de apelação, por meio do qual requereu, no mérito, a reforma da sentença recorrida e a procedência do pedido deduzido na inicial.

Afirmou, sobre o ponto, que a obra promove o discurso de ódio e a intolerância, sendo calcado em manifestações de caráter evidentemente discriminatório, tendo como alvo uma minoria estigmatizada, através de um viés etnocêntrico, quer seja, o grupo indígena Guarani-Kaiowá. Prosseguiu destacando a potencialidade lesiva do curta-metragem para a comunidade atingida, vez que reafirma o estigma vinculado à sua imagem. Pontuou, ademais, que o fato de a produção ter sido custeada com verbas públicas torna ainda mais grave e reprovável a conduta do demandado.

Destacou, por fim, haver ficado evidenciado que a situação narrada constitui hipótese caracterizadora de discurso de ódio (hate speech). Assim, explicou que a manifestação foi propagada em desfavor de uma minoria em termos qualitativos, por meio de uma obra exibida para um público indeterminado, de forma capaz de causar intensos danos ao grupo indígena referido. Diante disso, requereu o reconhecimento da configuração de dano moral coletivo e a imperatividade de sua reparação pecuniária.

No julgamento do feito pelo tribunal, foi vencido o Des. Fed. Wilson Zauhy que negava provimento à apelação do MPF, objetivando manter a sentença de improcedência do pedido em seus exatos termos. Assim, com os votos do relator Des. Fed. Helio Nogueira, acompanhado pelos Desembargadores Carlos Francisco e Cotrim Guimarães e pela Juíza Federal Convocada Noemi Martins, houve a reforma da decisão, com a consequente condenação do recorrido pelo reconhecimento da prática de discurso de ódio.

Para elucidar as razões da reforma, o relator do julgado transcreve trechos dos diálogos desenvolvidos no curta-metragem, por meio dos quais é possível verificar, em suas palavras, “a construção de um discurso veiculado com o fim de transmitir ideais preconceituosos e de ódio étnico, atentatórias à dignidade da comunidade indígena.”

Nas falas dos personagens, que estão em uma viagem de carro, é constituída a imagem do indígena como um indivíduo preguiçoso, ignorante, ébrio, que não trabalha e que gera problemas para a população brasileira. Instiga-se o preconceito e incita-se a violência, atribuindo a ele características depreciativas. A título exemplificativo, cita-se alguns trechos das conversas:

“Personagem Valdir (05min:27seg.): […] Nossas vidas valem menos do que a de um bugre? […]

Personagem Valdir (06min:01seg.): O que é que o índio tem para ser intocável? Qual a contribuição dele para o Estado brasileiro? É um troglodita sem passado. E eu, nós, somos europeus com séculos de história e civilização. Produz colares e cocares. Eu planto toneladas de sojas de milho, porque eu tenho que paparicar e sustentar essa escória pelo resto da minha vida? […]

Personagem Chico (06min:30seg.): nós também né? Aliás, por que eles querem as melhores terras do Estado se não plantam nada? Para mim são verdadeiros latifundiários improdutivos, indolentes. […]

Personagem Chico (07min:09seg.): Olha, oitocentos mil índios detêm treze por cento do território nacional e ainda querem mais? Essas terras dariam para alimentar cinquenta milhões de pessoas… mas tem que trabalhar né? Você acha que essa gente é capaz disso? Não, eles querem ficar o dia inteiro deitados numa rede, tomando cachaça e “pimbando” as índias a nossas custas!

Além disso, critica-se a FUNAI, através das conversas entre os personagens, dizendo-se que esta dá dinheiro aos indígenas para comprarem bebida alcoólica, bem como é defendida a falsa ideia de que os indígenas são sempre acobertados pelo manto da inimputabilidade, como se depreende dos seguintes trechos:

Personagem Valdir (gravação aos 05min:01seg.): veja bem, não pude defender a minha propriedade. A Funai disse que consta que um índio andou por lá há duzentos anos e que por isso a terra é indígena, e ai de mim se, para defender a minha casa, eu tivesse que matar um índio. Agora, se ele me matasse, como é inimputável, tava festejando até agora.

[…] Personagem Chico (08min:18seg.):E depois vem a FUNAI lotada de parasitas e ladrões falar em preservar a cultura indígena. Que cultura? De piolho e beiços de pau? Essa gente vive fazendo fogo e riscando pedras, limpam o rabo com folhas. Eles vivem na idade da pedra lascada.

Em certa parte do curta-metragem, os personagens param em uma loja de conveniências de um posto de gasolina, onde um indígena embriagado tenta comprar bebida alcoólica. O dono do bar nega-se à venda e o expulsa, afirmando que não quer dinheiro da FUNAI. Em seguida, diz que se o homem dançar o samba do indígena, pode beber, dizendo, em tom sarcástico, para comemorarem que este está “tomando a terra do homem branco”.

O indígena, então, dança, momento em que o dono do bar começa a dar gargalhadas e dizer “Isso, tá no puteiro, comendo a mulher dos brancos, então vamos comemorar isso, dança.” Em seguida, dois dos passageiros do carro oferecem carona ao indígena, ocasião em que os outros dois tripulantes se negam a viajar em sua companhia.

Um dos personagens declara: “Agradeço a carona, mas vou pegar outra condução. Eu não vou viajar com ele dentro do carro, sou racista”. O indígena, então, é colocado em um compartimento traseiro, separado por uma grade, sendo levado para uma reserva indígena.

Personagem Valdir (21min:20seg): deve ser um rejeitado pela tribo, bêbado a essa hora enquanto os outros estão saqueando fazenda. […]

Personagem Valdir (21min:36seg): já ajudei muito índio, até com dinheiro, hoje eu quero que se explodam! […]

Personagem Edson (22min:28seg): o Estado brasileiro não atende às necessidades básicas da sua própria população. Vejam aí essas manifestações de rua… protestos, vandalismo, nosso nível cultural é muito baixo, sistematicamente elegemos ineptos, corruptos, Brasília, FUNAI, ONGs, isso tudo é um monte de merda, estão cagando pra situação de vocês, essa que é a verdade. […]

Personagem Edson (23min:03seg): escreve aí, essa indenização para os invadidos é só cala-boca. Os índios vão continuar invadindo… Até pintar um banho de sangue absolutamente nada vai mudar. […]

Personagem Edson (23min:19seg): e eu vou falar uma coisa pra vocês, sabe o que é pior? Os índios foram picados por essa droga e estão virando traficantes…

Diante do contexto sinteticamente narrado, a partir dos aspectos principais da demonstração da ocorrência de discurso de ódio na narrativa apresentada no curta-metragem, o relator chega à conclusão de que

As manifestações explicitadas pelos personagens conduzem à formação de uma concepção discriminatória etnocêntrica, direcionada à violação de bens jurídicos atinentes à esfera extrapatrimonial de determinada comunidade. Os diálogos transcritos – notadamente, os trechos destacados – demonstram a promoção de discurso de ódio e intolerância, calcado em declarações de caráter notoriamente discriminatório, ferindo o direito à igualdade e promovendo a violência.

O desembargador, nesse sentido, afirma que não prospera a alegação do recorrido de que estaria exercendo de modo legítimo o direito à liberdade de expressão. Assim, realizando uma ponderação em sentido amplo, ele reconhece que houve, no caso, violação aos limites do relativo direito, de modo a se caracterizar hipótese justificadora de legítima restrição à manifestação de pensamento, em prol da tutela da isonomia em sentido material e dos direitos à dignidade humana e à não-discriminação.

Para fundamentar a decisão, cita trechos de uma obra de Daniel Sarmento, em que o autor conceitua o discurso de ódio, concluindo, com apoio nas lições do doutrinador, que o caso em apreço trata de prática lesiva à dignidade da pessoa humana, cuja vedação é legitimada. Além disso, transcreve também parte do voto proferido pelo Min. Roberto Barroso na ADC 41/DF, em que este explica que não é plausível atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, devendo tal direito encontrar balizas em outros valores democráticos, de modo a viabilizar a interdição do discurso de ódio.

Conclui-se do exame do julgado que a decisão nele proferida representa um avanço no reconhecimento, no Brasil, da existência do discurso de ódio enquanto prática atentatória a, dentre outros, o direito à dignidade da pessoa humana. O acórdão identifica, no caso em concreto, a incidência da relativa modalidade discursiva, apontando o preenchimento de todos os requisitos para a constatação de sua configuração.

Nessa trilha, ele demonstra terem sido proferidas por membros de um grupo majoritário mensagens atentatórias a valores coletivos de um grupo minoritário e estigmatizado, transmitindo ideias preconceituosas e de ódio étnico e, inclusive, incitando o preconceito, a discriminação e a violência. Para além, o julgado em questão também trata sobre o embate entre direitos fundamentais, apontando a necessidade da imposição de limites à liberdade de expressão, que não pode ser utilizada para justificar manifestações odientas.

Vê-se, portanto, que é acertada a decisão tanto pela lógica de descrever corretamente o que é o discurso de ódio e por quais elementos ele é composto, quanto por, cotejando o conceito com a realidade fática, concluir pela ocorrência deste no caso em apreço. A jurisprudência analisada, logo, merece servir de exemplo para o Poder Judiciário brasileiro na temática.

Inteiro teor: http://web.trf3.jus.br/base-textual/Home/ListaColecao/9?np=1

JURISPRUDÊNCIA SELECIONADA E COMENTADA 30 – BLOG DO NUDI

Por Pablo Domingues

O Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet, projeto desenvolvido pelo NUDI – UFSM, continua com sua pesquisa por jurisprudências que tragam o tema do Discurso de Ódio, bem como busca expor de que maneira o Judiciário brasileiro tem enfrentado essa temática. Hoje, venho apresentar um Acórdão em sede de julgamento de Embargos Infringentes, fruto de minha pesquisa.

Tal decisão foi encontrada através de pesquisa realizada no site do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), com a palavra-chave “discurso de ódio”. Dez resultados foram encontrados e, dentre esses, selecionei este para ser exposto e comentado.

O caso julgado pela 8ª Turma do TRF-4, em 21 de março de 2019, tratando-se de Embargos Infringentes e Nulidade em que é embargante X e embargado o Ministério Público Federal (MPF).

Os embargos foram opostos contra decisão da 8ª Turma do TRF-4, que reformou a sentença absolutória de primeiro grau, condenando a ré ao entender caracterizada a conduta delitiva presente no art. 20, §2º, da Lei n.º 7.716/89.

O julgamento da apelação já fora analisado neste Blog pela Nudiana Jéssica Freitas de Oliveira, podendo ser encontrado no seguinte endereço eletrônico: https://nudiufsm.wordpress.com/2017/09/29/jurisprudencia-selecionada-e-comentada-18/

Segunda a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, a ré teria praticado o seguinte ato delitivo:

Em 26 de outubro de 2014, às 15h24, na cidade de Caxias do Sul, a denunciada, ANGELICA MARCOLIN, incitou, por meio de seu perfil na rede social online Facebook (http://www.facebook.com.br), o preconceito contra a procedência nacional, especificamente dos cidadãos nascidos e que vivem nos estados do nordeste brasileiro. Na data dos fatos, a denunciada inseriu em sua ‘linha do tempo’ na rede social Facebook a seguinte mensagem:

Desculpem amigos, mas vou ser obrigada a falar!! Nordeste do Brasil…. Não trabalham, têm uma penca de filhos, são sustentados pelo Sul do país, pagamentos o Bolsa Família para eles, são gente ignorante, são burros, sem vontade, sem cultura e ainda sobrevivem do nosso turismo! Era óbvio que a Porca da Dilma ia ganhar lá! Como eu queria que o Sul do Brasil não pertencesse ao Brasil!! #MudaBrasil

A discussão levantada perante os Desembargadores Federais sustentou estar presente o dolo na conduta da ré, referente ao delito previsto no artigo 20, §2º, da Lei nº 7.716/89. Segue abaixo a redação do dispositivo legal:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
(…)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Participaram do julgamento 04 Desembargadores Federais e 03 Juízes Federais. Dos participantes, três votaram por dar provimento aos embargos – e absolver a ré – e três votaram em negar provimento – mantendo a condenação da ré. Por conta do empate, a Presidente da seção, Desembargadora Federal Maria de Fátima Freitas pediu vista e votou no sentido de dar provimento aos embargos.

Feito o relatório, é importante entender e analisar criticamente as justificativas apresentadas pelos magistrados para absolver a ré por ausência de dolo.

Em seu voto, a Desembargadora Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère defendeu que

[…] em que pese a manifestação equivocada e o linguajar inapropriado, impõe-se o reconhecimento de que resta ausente o dolo específico exigido para a configuração da prática delitiva de que ora se trata. Isto porque a discriminação preconizada na norma penal guarda relação com o objetivo de anular ou restringir direitos humanos e liberdades fundamentais nos diversos campos ou domínios da vida em sociedade, o que não se configura no caso dos autos.

Nesta perspectiva, seja pelo contexto em que ocorrido o fato (após eleição acirrada), seja pela pela ausência de elemento subjetivo do tipo, além da desproporcionalidade de imposição de sanção à hipótese em tela, é de ser acolhida a pretensão defensiva.

No mesmo sentido votou o Relator, Desembargador Federal Luiz Carlos Canalli:

No caso dos autos, tenho que não restou evidenciado que as afirmações postadas em rede social pela ré tenham sido proferidas com o intento de suprimir direitos das pessoas de procedência da região nordeste do Brasil, revelando não se tratar de discurso discriminatório a configurar o tipo penal em questão. Gize-se que as falas que ensejaram a denúncia foram expressadas em uma conjuntura de embate de opiniões em torno do resultado do pleito eleitoral de 2014, e, embora grosseiras, não se confundem com discurso voltado à anulação ou restrição de direitos a determinada parcela de indivíduos. Em verdade, no contexto dos fatos, a declaração da ré se situa no âmbito da manifestação crítica que não extrapola os limites da liberdade de expressão, garantida no artigo 5º, inciso IV, da Constituição da República, sendo, portanto, insuscetível de configurar o crime disposto no artigo 20, § 2º, da Lei 7.716/89. (grifo meu)

Diante da decisão em Embargos Infringentes, entendo por crucial destacar as palavras do Relator da Apelação Criminal que deu origem aos presentes Embargos. Em seu voto vencedor, o Relator Desembargador Federal Leandro Paulsen defendeu a condenação da ré. Em suas palavras:

E é plenamente justificável na concepção de uma sociedade moderna e arraigada em princípios humanitários que a propagação de ideias preconceituosas também seja objeto de repressão penal. Não há que se perder de vista que a disseminação do discurso da intolerância, calcado em manifestações retrógradas de cunho racista, xenófobos e preconceituoso, caso tolerada, poderá conduzir a formação de fenômenos incompatíveis com o que pressupõe o ideário constitucional.

Do que se analisa do presente julgado, resta evidenciada, mais uma vez, a incapacidade do poder Judiciário em lidar com situação que envolvem preconceitos. A argumentação dos Desembargadores Federais que defendem a absolvição da ré por ausência de dolo na conduta se reveste de uma busca por justificar aquilo que está posto: preconceito. No presente caso, preconceito por procedência regional, por cultura.

Os julgadores defendem a ausência de dolo na conduta da ré, pois suas palavras seriam “apenas grosseiras” e estariam justificadas por conta da eleição presidencial de 2014. Ora, nesse sentido, defendem os julgadores que proferir ofensas, discriminações, defender que nordestinos “são gente ignorante, são burros, sem vontade, sem cultura” é justificável devido ao momento “acalorado” das eleições presidenciais.

Não resta outro sentimento além de indignação contra uma decisão nesse sentido, que relativiza o preconceito, desconsidera a pesquisa acadêmica e legitima o preconceito. Inclusive, o Desembargador Federal Leandro Paulsen, no julgamento da apelação, citou artigos científicos de produção acadêmica, expondo que:

Segundo Rosane Leal da Silva et al, o ‘discurso de ódio’ caracteriza-se pelo conteúdo segregacionista, fundado na dicotomia da superioridade do emissor e na inferioridade do atingido (a discriminação), e pela externalidade, ou seja, existirá apenas quando for dado a conhecer a outrem que não o próprio emissor.

Observa-se que o próprio julgador reconhece a existência do discurso de ódio, entende ele como sendo composto essencialmente pelo conteúdo segregacionista, mas entende que definir pessoas moradoras do Nordeste brasileiro como “sem cultura e ignorantes”, trata-se de uma mera manifestação, protegida pela liberdade de expressão.

É bem sabido e evidente que a liberdade de expressão não se constitui apenas como um direito previsto na Constituição Federal, mas representa uma luta de gerações para conseguir incluir esse direito na Carta Magna. Inclusive, de uma Constituição promulgada logo após um longo período de Ditadura Militar, onde a repressão e perseguição contra as ideias diversas era a prática do governo.

Contudo, tal direito, assim como todos, não são revestidos de proteção absoluta. Cabe à analise do caso em concreto para sopesar qual direito fundamental deve ser melhor tutelado, prevalecendo-se, eventualmente, direitos como dignidade da pessoa humana, direitos da mulher, dos negros ou, como no caso presente, direito à dignidade das pessoas nordestinas.

Em opinião pessoal deste autor, entendendo que a via criminalizante não é a correta para combater o discurso de ódio, nem qualquer violência. Isso pois me filio à corrente abolicionista da Criminologia Crítica, entendendo que que a deslegitimidade do sistema penal vem atrelada à existência da sociedade capitalista, sendo essa uma sociedade baseada sobre a desigualdade e sobre a subordinação. Assim, “substituir o direito penal por qualquer coisa melhor somente poderá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor” (BARATTA, 2011, p. 207).

Porém, entendo que o não reconhecimento do discurso de ódio no presente caso – com a consequente condenação na prática de crime previsto na Lei Caó – reflete o paradigma racista e preconceituoso do judiciário brasileiro.

Nesse sentindo, entendo haver uma herança preconceituosa e seletiva no sistema de justiça penal, o que explica decisões como a ora analisada. A herança racista social e, por consequência, a seletividade racial do sistema penal, não é um problema de negros, é um problema da hierarquização racista, sexista, classista, cristã e heteronormativa que pelo Brasil se estruturou e criou bases sólidas no cerne da sociedade. Assim, para que a sua enunciação não reproduza a lógica do inimigo, tão contundentemente rebatida pela criminologia crítica, é preciso que se entenda que a herança branca da escravidão só pode ser resguardada em um contexto que reforça a inferioridade negra, bem como sua memória, saberes e agência (PIRES, 2017, p. 6).

Continuaremos a luta, dia após dia, lutando pelo reconhecimento e dignidade do povo oprimido, seja qual opressão sofra.


REFERÊNCIAS:

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 6ª ed, 2011.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminologia Crítica e pacto Narcísico: Por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 135/2017 | p. 541 – 562 | Set / 2017

 

Jurisprudência selecionada e comentada 22

Por Caroline Adolfo Machado,

       No dia 17 de setembro de 2018, foi realizada uma pesquisa jurisprudencial no site do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a qual abrange os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul com os seguintes termos: “ódio” e “internet”. Em tal pesquisa foram encontrados 6 documentos. Dentre eles encontra-se a apelação criminal número XXX, que teve sua decisão conferida em 20/08/2015.

      Em tal jurisprudência, o Ministério Público Federal fez uma denúncia que consistia em um endereço eletrônico que teria veiculado conteúdo racista e de ódio contra pessoas de tal raça. Desse modo, o réu admitiu em seu interrogatório judicial que frequentava os fóruns SAMA e AL-FALUJAH, que tinham as mensagens de tal cunho preconceituoso. De tal modo, o réu “A” postou na internet arquivos de seu pen drive que eram de origem dos fóruns. Portanto, a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu, por unanimidade, dar provimento à apelação, condenando o réu segundo o art. 20, §2º da Lei nº 7.716 de 1889:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

  • Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.”

     Dessa forma, é perceptível o ódio refletido na internet contra grupos específicos de pessoas, que são cada dia mais presentes nas ações do Poder Judiciário, ou até mesmo reflexos de ideias repressoras dos tempos da Segunda Guerra Mundial. Aliás, é necessário ratificar que a sociedade é integrada por várias pessoas distintas, sem ser possível todas serem iguais, por isso é indispensável o reconhecimento e respeito às diferenças, sejam elas de etnia, raça, cor, religião ou qualquer outra forma de distinção.

Acesso ao inteiro teor: http://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/4552249