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A presença de crianças e adolescentes na internet: lançamento da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2022

Por Jackeline Prestes Maier

A pesquisa TIC Kids Online Brasil possui como “objetivo gerar evidencias sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil”. A partir da entrevista com crianças e adolescentes – de 9 a 17 anos –, os dados buscam investigar o perfil de uso da internet, às atividades realizadas por crianças e adolescentes, o uso de redes sociais, as habilidades para o uso da internet, a mediação, consumo e seus os riscos e danos. A última pesquisa lançada pelo CETIC.br, em 03 de maio de 2022, revela dados coletados entre junho a outubro de 2022, apoiados em entrevistas de 2.604 crianças e adolescentes e 2.604 pais ou responsáveis.

Sob a perspectiva da conectividade, é importante ressaltar que 96% dos usuários de 9 a 17 anos acessaram a internet todos os dias ou quase todos os dias. Merece atenção o fato de que, de acordo com os dados levantados, 56% das crianças e adolescentes nunca ou quase nunca deixam de usar a internet porque seus pais ou responsáveis controlam ou impedem o uso.

Apesar desses dados extremamente significativos, 31% dos usuários assentiram que sentem que a velocidade da internet fica ruim e 22% que ficam sem internet quando os créditos do celular acabam. Essa questão é presente principalmente quando se trata de crianças em situação de maior vulnerabilidade, sendo essas questões reportadas com maior frequência pelos usuários da classe DE.

Ainda quanto a conectividade, percebe-se que 96% dos usuários de 9 a 17 anos utilizam a internet por meio do dispositivo celular e 43% através do computador. Nota-se também o aumento do uso da televisão para o acesso a internet, com estimativa de 63% e do uso de videogame, com 24%, principalmente entre as classes sociais AB e C.

No que concerne às atividades e habilidades realizadas na internet, é possível verificar que na categoria de multimidia, 87% dos usuários alegaram acessar a internet para ouvir música online e 82% para assistir a vídeos, filmes ou séries. Já no que concerne à educação, 80% pesquisou na internet para fazer trabalhos escolares e 65% pesquisou na internet por curiosidade ou vontade própria. Por fim, no que tange à comunicação, 79% enviou mensagens instantâneas e 32% conversou por chamada de vídeos.

De acordo com a pesquisa, 86% dos usuários de 9 a 17 anos possuem perfil em rede social. Entre as principais redes de acesso estão o TikTok, Instagram e Facebook, que variam de acordo com a faixa etária da criança ou adolescente. O TikTok, por exemplo, possui maior acesso entre crianças de 11 a 12 anos, com 46%. Por outro lado, o Instagram é mais utilizado entre os usuários que possuem entre 15 a 17 anos, com 51%. O Facebook é a rede menos utilizada, com a maior porcentagem de 9%, entre os usuários de 15 a 17 anos.

É perceptível também o crescimento do uso da internet para jogos online. 57% dos usuários afirmaram que já jogaram online, não conectado com outros jogadores e 58% declaram que já jogaram online, conectado com outros jogadores. Esses dados reportam uma importante relação com os estudos realizados Sonia Livingstone e Mariya Stoilova (2021, p. 06), no que diz respeito aos “riscos de contato” e as novas formas de relacionamento de crianças e adolescentes dentro do ambiente digital, que podem levar a contatos com terceiros mal-intencionados e principalmente gerar situações de assédio sexual, perseguição, abuso sexual infantil e vigilância indesejada ou excessiva.

Em uma nova perspectiva, a pesquisa TIC Kids Online de 2022 analisou o uso da internet para saúde e bem-estar. Segundo a coleta de dados, 39% dos usuários reportaram que o uso da internet ajudou a lidar melhor com algum problema de saúde; 34% afirmaram que procuraram na internet informações sobre saúde; 30% já usaram a internet para procurar ajuda quando aconteceu algo ruim ou para conversar sobre as emoções quando se sentiram tristes; e 33% dos usuários reportaram já ter acontecido alguma coisa na internet que não gostaram, os ofenderam ou chatearam.

Aspectos relacionados às habilidades para o uso da internet também chamam atenção. A pesquisa investiga dimensões sobre habilidades operacionais, informacionais, sociais e criativas de crianças e adolescentes. 94% afirmaram saber baixar ou instalar aplicativos; 84% informaram que sabem como proteger o celular ou o tablet, com um PIN, padrão de tela, impressão digital ou reconhecimento facial; 72% declararam saber como ajustar as configurações de privacidade, como por exemplo nas redes sociais; 70% garantiram compreender como denunciar um conteúdo ofensivo relacionado a criança ou a pessoas com quem convive; 57% aduziram conseguir verificar se uma informação encontrada na internet está correta.

Percebe-se, a partir desses dados, um conhecimento maior quanto à funcionalidade da rede do que propriamente uma visão mais crítica sobre o seu uso. Essas porcentagens demonstram que, apesar da facilidade instrumental com as novas tecnologias, crianças e adolescentes, por vezes, não possuem maturidade e experiência suficientes para compreender determinadas questões, riscos e danos existentes no ambiente digital. Esses dados demonstram, mais uma vez, a importância da mediação e orientação familiar nas atividades online desenvolvidas por crianças e adolescente.

Associado ao conhecimento de conteúdos publicitários, 74% das crianças e adolescentes concordam que empresas pagam pessoas para usar seus produtos nos vídeos e conteúdo que publicam na internet. Essas estratégias, no entanto, são reconhecidas com mais facilidades pelos usuários de 15 a 17 anos (82%), sendo menor a sua identificação por crianças de 11 a 12 anos (65%).

A edição de 2022 da pesquisa incluiu em seus dados indicadores sobre a privacidade e as estratégias utilizadas por crianças e adolescente para proteção da sua privacidade na rede. A análise demonstrou que 79% dos usuários de 11 a 17 anos são cuidadosos com as informações pessoais que postam na internet. Na mesma faixa etária, 77% reportaram que só usam aplicativos ou sites que confiam, 76% afirmaram que são cuidadosos com os links de vídeos em que clicam e 73% alegaram que são cuidadosos com os convites de amizade que aceita na internet.

Em menor porcentagem, 63% informaram que só compartilham na internet coisas com amigos próximos, 58% que fornecem o mínimo de informações pessoais possível ao se registrar online e 55% que lê os termos de privacidade dos aplicativos e sites. Por fim, apenas 26% dos usuários informaram que, às vezes, cobrem a câmera do computador ou do celular com um papel ou adesivo para prevenir que sejam vistos.

Analisando os dados apresentados pela pesquisa, é inquestionável a presença de crianças e adolescentes no ambiente digital. No entanto, para além desse aspecto, já ressaltando nas pesquisas anteriores, os dados apresentados em 2022, em sua inovação, revelam as principais atividades realizadas por crianças e adolescentes, bem como suas habilidades diante das ferramentas digitais. Esse panorama representa um importante avanço para o enfrentamento dos riscos existentes no ambiente digital e para alertar os corresponsáveis pela proteção integral (família, Estado e sociedade) dos desafios existentes para proteção de crianças e adolescentes no ambiente virtual.

Os dados aqui mencionados trazem um resumo da íntegra da pesquisa mencionada, que pode ser acessada neste link. O lançamento dos dados, realizado no canal do YouTube do NIC.br, também pode ser contemplado neste link.

REFERÊNCIAS:

LIVINGSTONE, Sonia; STOILOVA, Mariya. The 4Cs: Classifying Online Risk to Children. Hamburg: Leibniz-Institut für Medienforschung Hans-Bredow-Institut (HBI); CO:RE – Children Online: Research and Evidence, 2021. Disponível em: https://www.ssoar.info/ssoar/handle/document/71817. Acesso em: 24 jan. 2023.

NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DOCENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO [CETIC.BR]. TICs Kids Online Brasil 2022: Principais resultados. São Paulo, 2022. Disponível em: https://cetic.br/media/analises/tic_kids_online_brasil_2022_principais_resultados.pdf. Acesso em: 03 mai. 2023.  

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PARTE 3 – Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Chegamos na última parte da nossa série de três textos sobre as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023. Na última parte vimos outras alterações promovidas para além da incorporação do crime de Injúria Racial na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89). Agora, tecerei comentários finais sobre as alterações legislativas estudadas até aqui.

  1. Comentário finais

Não pretendo me alongar mais, já que muito o fiz ao longo desse texto. Apenas gostaria de pontuar alguns aspectos finais.

Primeiro, por me identificar com a criminologia crítica, não vejo com bons olhos produções legislativas expansivas do Poder Punitivo, notadamente com a majoração de penas criminais ou criação de tipos penais novos. Entretanto, não se pode perder de vista que a lei ora analisada representa um marco no reconhecimento pelo Estado do racismo como violência real.

Filiou-me, também, a uma perspectiva abolicionista penal, visando a abolição da pena de prisão. Entretanto, não existe prática abolicionista penal no capitalismo. Isto é, a extinção da pena – no seu sentido mais complexo e completo e não apenas a de prisão – não é possível dentro do contexto capitalista, de modo que o abolicionismo sabe e sempre defendeu, e me filio integralmente, que o Sistema Penal nada mais faz do que cumprir um papel dentro do sistema capitalista. Para abolição da pena, portanto, é necessário primeiro a abolição dessas funções exigidas do Sistema Penal.

Dito isso, a previsão de novos tipos penais e a majoração das penas base, como no caso ora analisado, não demanda uma análise reducionista de “se criou um crime então é ruim”. Percebemos com essa nova lei, um marco na interpretação do racismo pelo Estado brasileiro, uma tentativa de redimensionamento da proporcionalidade de penas no direito penal.

A existência do direito penal, pelo menos por ora, é certa. É certo, também, que há desproporcionalidade nas penas previstas pelo direito penal brasileiro. Por exemplo, o crime te Golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal), pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão, muito conhecido nos últimos dias, cujo bem jurídico tutelado é nada mais nada menos do que a própria Democracia, possui pena menor do que o crime de Tráfico de Drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06), cuja pena é de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão.

Essa desproporcionalidade na previsão de penas para crimes com bens jurídicos distintos, mas um com clara superioridade de importância em relação ao outro, não é novidade. Agora, o que faz o Legislador criminal na Lei n.º 14.532/2023, para além de uma visão reducionista de mera “expansão do direito penal”, é corrigir parte dessa desproporcionalidade1.

Apesar do reconhecimento se dar pela via da criminalização, não se pode tratar a criação de tipos penais ou majoração de penas referentes a delitos cometidos contra grupos socialmente vulnerabilizados e esquecidos pelo Estado da mesma forma que interpretamos a expansão do Direito Penal para outros crimes, como por exemplo delitos patrimoniais e tráfico de drogas, responsáveis pelo grande encarceramento de pretos e pobres nas prisões brasileiras.

É evidente que se trata de um reconhecimento da existência do racismo e da sua gravidade para a comunidade negra. A lei inova e muito ao trazer um “guia interpretativo”, bem como positiva o racismo recreativo, conceito desenvolvido pela literatura especializada (como o citado Adilson Moreira no conceito de racismo recreativo). Isso representa um avanço, traz protagonismo de autores e autoras negros e negras e de suas produções intelectuais.

Mas é necessário cobrar. Não pode a única medida do Estado ao enfrentamento do racismo vir na forma de leis penais.

A despeito do reconhecimento legislativo, o racismo institucional apresenta-se no Judiciário e no Ministério Público, servindo de barreira ao reconhecimento da prática de racismo no cotidiano processual. A pesquisa de Thula Pires2 é sempre atual para demonstrar a dificuldade – quase que proposital – do Judiciário em reconhecer a prática de racismo. Em um Judiciário branco3, imerso no racismo institucional e naquilo que antes expliquei como racismo velado, discurso de ódio velado, reconhecer no outro a prática do racismo, no réu, pode ser reconhecer em si mesmo o racismo. E isso é demais. “Racista, eu? Jamais”.

Os crimes de racismo, especialmente o artigo 20 da Lei de Racismo, existem desde 1989. Não há novidade. Novidade seria se o Judiciário reconhecesse a sua ocorrência, já que sempre desclassificou condutas inicialmente denunciadas como Racismo pelo Ministério Público para a antiga Injúria Racial. A novidade legislativa não impede isso. O crime de injúria racial ainda persiste e pode o(a) juiz(íza) reconhecer uma conduta não como racismo, mas como injúria racial. A novidade, agora, é que injúria racial é racismo.

Por fim, não se pode cogitar no Judiciário um papel de proteção de vítimas. Toda a sua organização é voltada para o apagamento da vítima, a menor participação possível. A novidade legislativa de assistência da vítima por advogado ou defensor público é um pequeno – minúsculo – reconhecimento de dignidade da vítima. Mas não esqueçamos, a nossa Justiça jamais conseguirá assegurar a proteção das vítimas, muito menos aquilo que lhes é mais caro: a restauração da sua dignidade. Não é o Sistema Penal o caminho para erradicação do racismo, de evidenciá-lo e indicar o problema em “piadas racistas”, comentários “inoportunos” que, em verdade, são todos racismo. Velado ou não, é racismo. Piada ou não, é racismo.

O reconhecimento efetivo das dores da vítima somente é possível conferindo-lhe voz, inclusive no processo decisório, mas esse desvinculado do tradicional processo decisório do Judiciário. O protagonismo da vítima tanto no relato do sofrimento, quanto na conversa com o agressor, são elementos essenciais de um processo de reconhecimento e busca por diminuição dessa violência.

A vítima deve, pois, possuir local de destaque, mas esse jamais poderá ser concedido pelo Judiciário. O agressor, também, deve ter dimensão do dano causado e a medida responsiva à sua conduta deve(ria) responder à agressão cometida, mas a resposta do Sistema Penal é sempre redutora, genérica e jamais atenta à particularidade do conflito existente entre vítima e vitimizador. A resposta é sempre uma: pena de prisão.

Portanto, é pelo caminho de justiça restaurativa4, transformativa e fora dos muros do Judiciário como identifica Vera Andrade5, que assegure efetivamente a participação de vítimas para que tenham a oportunidade de relatar o seu sofrimento pela sua própria voz, que possam transmitir ao agressor o seu sentimento e possa o agressor também falar, ambos falando e sendo escutados em um processo pautado pela escuta atenta e pelo reconhecimento de ambas as trajetórias, é que poderemos caminhar no sentido de uma compreensão coletiva das mazelas do racismo.

1 Até essa lei o crime de furto (artigo 155 do Código Penal) apresentava pena semelhante ao do antigo crime da antiga injúria racial, 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão para o furto simples e 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para a antiga injúria racial.

2 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e legitimação do controle social sobre os negros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Brado Negro, 2016. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=34475@1

3 Segundos dados do CNJ, 80% dos magistrados brasileiros são brancos (https://www.cnj.jus.br/juiz-brasileiro-e-homem-branco-casado-catolico-e-pai/).

4 GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura para além da punição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2ª ed., 2022

5 BRASIL. Fundação José Arthur Boiteux. Universidade Federal de Santa Catarina. Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2018. 376 p. (Justiça Pesquisa). Relatório analítico propositivo. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/284.

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PARTE 2 – Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Este é o segundo texto da nossa série sobre as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023. Na primeira parte vimos a principal mudança referente à incorporação do crime de Injúria Racial na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89). Agora, mergulharemos em outras alterações legislativas importantes.

  1. Outras alterações

Para além da alteração mencionada acima, outras devem receber igual destaque porquanto igualmente inovadoras e importantes. Abaixo, analiso apenas as principais alterações de maior impacto.

1.1. Racismo na Internet

O artigo 20 da Lei de Racismo, anteriormente mencionado, prevê como forma qualificada o cometimento de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião quando praticada por intermédio dos “meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza”:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:      (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

A anterior redação do §2º do artigo 20 acima mencionado apenas previa o cometimento da discriminação ou preconceito “por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”. Ou seja, inovou o Legislador ao prever expressamente as redes sociais como ambiente possível de propagação da discriminação ou preconceito racista, apesar da jurisprudência já compreender que o artigo 20 da Lei de Racismo era o tipo penal adequado para punir tais condutas, apesar de, na prática, percebemos uma grande resistência dos Tribunais em condenar réus pela prática desse crime.

Mesmo assim, o reconhecimento Legislativo da prática de atos racistas por intermédio das redes sociais representa um (pequeno) avanço a partir dos mais atuais debates acadêmicos sobre os efeitos nocivos das redes sociais para servir como espaço de proliferação de discursos de ódio, inclusive racistas.

Para quem tiver interesse, o blog do NUDI oferece um grande número de comentários sobre decisões acerca do (mal) uso do artigo 20 na aba referente ao “Observatório de Discursos de Ódio”, clicando em “Jurisprudências Selecionadas e Comentadas”.

1.2. Racismo Esportivo, Religioso, Artístico ou Cultural

Outra novidade legislativa diz respeito ao §2º-A inserido no mesmo artigo 20 acima comentado. A inovação diz respeito a uma nova qualificadora da prática, induzimento ou incitação de práticas discriminatórias ou preconceituosas, agora cometido no contexto esportivo, religioso, artístico ou cultural:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

A inserção dessa qualificadora surge a partir de inúmeras casos envolvendo racismo no esporte, sobretudo em estádios de futebol[1], seja por torcedores ou jogadores.

É prevista uma pena nova de perda de direito político consistente na proibição de frequência por 03 (três) anos no ambiente onde se praticou o delito. Por exemplo, caso seja o crime praticado no contexto esportivo, além da pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, o réu receberá a pena de proibição de frequentar locais esportivos por 03 (três) anos.

Não fica claro na lei a extensão dessa pena, sendo certo que caberá à jurisprudência fixar os parâmetros de proporcionalidade a ser tomado pelo(a) juiz(íza) quando da aplicação e interpretação dessa penalidade, sob pena de configurar pena abusiva que proíba uma pessoa condenada de frequentar todo e qualquer ambiente esportivo.

É claro, no exemplo acima citado, a princípio, fica evidente que um torcedor praticante de ofensas racistas no contexto de uma partida de futebol, caso condenado, ficaria impedido de frequentar estádios e jogos de futebol por 3 (três) anos. Contudo, pela interpretação literal da lei, poder-se-ia estender essa proibição a outras atividades esportivas o que, ao meu sentir, seria desproporcional e aplicaria pena abusiva e ilegal como, por exemplo, proibição de frequentar uma partida de handebol, basquete ou outros esportes diversos do futebol.

Enfim, caberá à jurisprudência fixar os parâmetros legais (STJ) e constitucionais (STF) para aplicação dessa nova penalidade.

1.3. Majorante de Racismo Recreativo

O novo artigo 20-A da Lei 7.716/89, introduzido pela lei agora estudada, trouxe a previsão de aumento da pena de 1/3 até a metade quando qualquer um dos crimes previstos na Lei de Racismo for cometido no contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. A majorante vale para todos os tipos penais previstos na Lei de Racismo.

Talvez a maior polêmica dessa nova Lei, é a previsão expressa de uma majorante para quando o crime for cometido em contexto de diversão e descontração. É a positivação do conceito de racismo recreativo, na inteligência de Adilson Moreira (2019) definido como sendo uma política cultural, um comportamento individual, mas não somente ele, presente em diversas formações culturais, sobretudo nos meios de comunicação. O racismo recreativo é, pois, a manifestação do racismo por meio de um suposto humor, mas na realidade são manifestações e comunicações de estereótipos reprodutores de conteúdos racistas (MOREIRA, 2019, p. 67). São mensagens com intenção cômica, mas têm fundamentos baseados no racismo, valendo-se do humor como meio de propagação de falas, piadas e humores racistas. A conceituação legal do racismo recreativo desvela a impossibilidade de o humor ser interpretado deslocado da mensagem por ele propagada, podendo ser racista. Trata-se, em síntese, de um racismo com intenções humorísticas e de diversão, um racismo de caráter recreativo (MOREIRA, 2019, p. 23).

Em minha visão, essa majorante – que vale para todos os crimes previstos na Lei de Racismo – poderia ser utilizada em conjunto com a qualificadora do artigo 20, o seu §2º-A, anteriormente analisado. Poderia, em um exemplo, pensar em um programa de humor – se é que podemos assim chamar – portanto uma “atividade artística”, na qual o (autointitulado) humorista reforce estereótipos racistas por meio de “piadas”. Entendo que, nesse caso, poderia o agente ser denunciado pela forma qualificada do artigo 20-A, §2º-A e, em eventual condenação, ter a pena majorada de 1/3 até a metade por se tratar de racismo cometido com intuito recreativo, em um contexto de busca por uma diversão, uma piada que agrade a todos, mas apenas serve para propagar ofensas racistas veladas e fantasiadas de humor.   

O Artigo 20-B, agora acrescido, também prevê majorante de 1/3 até a metade para funcionário público (definição do Código Penal) que pratique injúria racial (artigo 2º-A) ou prática, induzimento ou incitação de discriminação ou preconceito (artigo 20).

O Legislador positivou uma definição acadêmica de racismo, muito presente na nossa sociedade, mas ao mesmo tempo naturalizada pelo seu caráter velado. Não é incomum observar a invocação de uma onipotente liberdade de expressão como escusa, uma carta de salvo-conduto, para prática de “piadas” com cunho racista, reprodutoras de uma ordem social desigual e violenta. Além disso, essas “piadas”, o “humor negro” (sic), serve para manutenção de estereótipos racistas ligados a pessoas negras, mas não somente a elas, já que a lei reserva-se a tutelar religiões e procedências nacionais vulnerabilizadas. Pode-se, assim, também pensar em piadas xenofóbicas com intuito de reforçar estereótipos xenófobos para imigrantes ou ainda para um cidadão brasileiro, habitante de uma região do país alvo de preconceito e discriminação, tal como os habitantes do nordeste brasileiro[2]. Pode-se pensar, também, em racismo recreativo no contexto de religiões de matriz africana, alvo de “piadas” sobre macumba e sua associação com “forças malignas” ou “magia negra” (sic). Por fim, também estende-se a norma à discriminação e preconceito contra povos originários, coibindo eventuais tentativas de humor que, por exemplo, tentem associar indígenas com estereótipos negativos tais como preguiça, ou outros mais eugenistas, como a defesa, por meio do humor, de uma suposta inferioridade étnica entre indígenas e os demais brasileiros.

A liberdade de proteção, direito fundamental e humano tão caro às pessoas marginalizadas porquanto assegura minimamente a sua capacidade de expressão e reivindicação de direitos, jamais poderia ser utilizada como escudo para proteção de discursos racistas destinados justamente a ofender essa coletividade de pessoas socialmente vulnerabilizadas. Não é a liberdade de expressão direito apto a assegurar proteção legal de uma tentativa de humor. Isto é, aqueles “humoristas” que, a pretexto de uma suposta liberdade de expressão”, praticam atos racistas fantasiados de “piadas”, o chamado “humor negro” (sic).

O racismo recreativo insere-se no conceito doutrinário e acadêmico de discurso de ódio. Apesar da ausência de tipificação legal expressa, o discurso de ódio enquanto conceito sócio-político e jurídico é amplamente aceito pela literatura acadêmica jurídica e é encontrado em diversas decisões judiciais, apesar de aplicações conceituais esdrúxulas. Apesar disso, por meio de estudos sobre discurso de ódio, é possível perceber que a sua mera manifestação constitui um dano, uma violência, ao destinatário. O discurso de ódio é um dano em si, não sendo necessária a prática de outros atos destinados a ofender a integridade física da vítima[3]

Seja na forma de um discurso de ódio direto, destinado a uma pessoa, ou na forma de um discurso de ódio indireto, aquele destinado a uma coletividade, essa violência por si só provoca danos individuais e coletivos na medida em que reforça estereótipos ofensivos, incita à violência, exclusão, discriminação e preconceito, podendo, inclusive, em formas mais graves, propor a eugenia social, com a total extinção de um grupo específico.

Por isso, não se cogita usar a liberdade de expressão como salvo-conduto para práticas de discurso de ódio, mesmo essas aparecendo por meio de “piadas”, as quais carregam consigo violências veladas. A forma velada do discurso de ódio mostra-se como uma das mais graves porque é de difícil identificação pelo público em geral e pela própria vítima que, não raras vezes, sequer sabe estar na condição de vítima de um discurso de ódio. Essa violência tem por prática o uso de técnicas de persuasão, já que são discursos propagados com certa naturalidade em todos meios sociais, desde a família até a religião, escola, universidade, o que lhe assegura legitimidade e maior facilidade de absorção e internalização, inclusive pelas próprias vítimas[4].

A normalização do racismo, que surge também a partir da sua dimensão recreativa, faz com que condutas racistas possam transitar no discurso social e receber nele aceitação, já que muitas vezes veladas. Comentários sobre o cabelo crespo, tamanho do lábio e do nariz, ou discriminações religiosas como associar religiões de matriz africana como “diabólicas”, são apenas alguns poucos exemplos de condutas facilmente identificadas no cotidiano social, mas raramente nomeadas como racismo ou discurso de ódio racista. Por isso, penetram com maior facilidade no imaginário público, produzindo danos a um número não identificado de vítimas que, por presenciarem e sofrerem durante sua vida inteira essa violência, passam a naturalizá-la e, com isso, o discurso de ódio velado passa a ser aceito, inclusive pelas próprias vítimas, que perdem pouco a pouco a capacidade de discernimento entre o que é uma violência e o que é uma “piadinha”.

Ir contra essa forma velada, desvelando-a e nomeando-a como discurso de ódio racista, desafia esse status social que há muito aceitou essas “piadas” e comentários como naturais e saudáveis. Por isso, institivamente invocam a liberdade de expressão ou “não é racismo, apenas uma piada” para servir de justificação para a conduta racista, portanto criminosa. Ao invés de reconhecer o erro, não raramente os interlocutores dessa violência defendem sua conduta, convictos que a sua “piada” inofensiva é nada mais que um comentário humorístico com intenção de divertir a galera.  Ignoram, contudo, os processos responsáveis pela produção das representações derrogatórias sobre minorias raciais[5].

As representações humorísticas, ou os comentários supostamente inofensivos, são amplamente aceitos e difundidos há décadas, mas isso não significa que não sejam racistas. Não se pode perder de vista que os estereótipos raciais presentes em piadas e brincadeiras são os mesmos que motivam práticas discriminatórias contra minorias raciais em outros contextos. Portanto, o humor racista, uma prática de discurso de ódio velada, é um meio de propagação de hostilidade racial[6].

1.4. Guia interpretativo

Uma inovação da nova Lei nunca prevista em qualquer lei criminal, salvo engano, é a do artigo 20-C. Nesse dispositivo, o legislador trouxe uma espécie de “guia interpretativo” para o juiz que venha a julgar crimes tipificados na Lei de Racismo.

Diz o artigo 20-C:

Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.

A inovação é clara. Se antes havia, ainda que muito remotamente – e bem absurdo – qualquer debate sobre a possibilidade de utilização da Lei de Racismo para criminalizar inexistente preconceito e discriminação contra pessoas brancas, por exemplo, o artigo 20-C enterra de vez essa inútil discussão.

Não há de se cogitar a criminalização de uma coisa que não existe. Portanto, é impossível a criminalização do preconceito ou discriminação contra pessoas brancas em razão da sua condição de pessoas brancas pela sua total inexistência no mundo real – talvez existente no mundo delirante de algumas pessoas. E isso fica evidente pelo artigo 20-C o qual exige do(a) juiz(íza) que considere questões outras não previstas na lei para julgamento dos crimes tipificados na Lei de Racismo.

É evidente que se exige de um(a) juiz(íza) capacidade interpretativa para além do texto legal, considerando a realidade sociopolítica e histórica do Brasil. Entretanto, nunca é demais lembrar o porquê da criação de certas leis. Esse é o caso da Lei do Racismo.

As tipificações criminais existentes na Lei Caó visam punir condutas preconceituosas ou discriminatórias contra minorias socialmente vulnerabilizadas, nela delimitada como grupos socialmente vulnerabilizados pela sua etnia, raça, procedência nacional ou religião. Portanto, no que tange preconceito ou discriminação de raça, evidente que, no Brasil, estar-se a dizer de preconceito ou discriminação contra pessoas negras, por exemplo. Esse grupo, sim, socialmente vulnerabilizado.

O mesmo vale para o preconceito religioso, o qual não comporta qualquer absurdo argumento que defenda a existência de discriminação ou preconceito dirigido contra católicos-cristãos nem contra evangélicos. A previsão instituída pela Lei de Racismo é evidente para criminalização de condutas preconceituosas e discriminatórias contra religiões oprimidas no Brasil, tais como religiões de matriz africana e aquelas praticadas pelos povos originários.

Sendo assim, o artigo 20-C acerta em positivar o óbvio: a interpretação da Lei de Racismo deve sempre considerar as estruturas sociais produtoras de desigualdade e jamais deve o(a) juiz(íza), na análise do caso em concreto, minimizar condutas racistas. Isto é, não pode o(a) juiz(íza) considerar a absolvição com fundamento de que o “comentário do réu, apesar de ofensivo, não representa discriminação ou preconceito”. Não é raro encontrar essa argumentação nas decisões judiciais referentes aos crimes de racismo. Algumas, inclusive, estão comentadas aqui no blog do NUDI[7].

A partir do artigo 20-C, que vejo com bons olhos, não apenas há um alerta aos juízes, como a partir da positivação do óbvio, permite o acesso ao Superior Tribunal de Justiça por meio de Recurso Especial alegando violação do artigo 20-C quando houver, em decisão judicial, minimização de condutas racistas, como uma aplicação aversa do crime de bagatela para condutas racistas.

Claro, eventuais recursos para Tribunais Superiores, notadamente o STJ por se tratar de Lei Federal, encontram diversas barreiras processuais, principalmente da Súmula 07/STJ, impedindo o revolvimento fático-probatório no Recurso Especial. Entretanto, é inegável que a inserção de um dispositivo expresso na Lei dando balizas à interpretação judicial facilita o acesso a instâncias recursais, pensando em eventual processo judicial.

Por fim, entendo que a inserção do artigo 20-C na Lei de Racismo caminha na construção de um Direito Antidiscriminatório, na definição dada por Adilson Moreira, como uma série de normas que pretendem reduzir ou eliminar disparidade significativas entre grupos[8].

São, pois, mecanismos legais que visam efetivar políticas de igualdade e anulação de mecanismos discriminatórios responsáveis por manter grupos sociais em uma permanente desvantagem estrutural em relação e outros grupos sociais. É, portanto, o artigo 20-C, um mecanismo de efetivação de uma igualdade formal e material (artigo 5º da Constituição Federal), mas também um mandato interpretativo para a atividade judicante.

1.5. Assistência à vítima

    O último dispositivo legal analisado é o artigo 20-D recém inserido na Lei de Racismo, o qual prevê a obrigatoriedade de, em todos os atos processuais, cíveis e criminais, acompanhamento de advogado ou defensor público assistindo à vítima dos crimes de racismo.

    A nova Lei retira da vítima o protagonismo da ação penal ao modificar a ação penal da injúria racial de público condicionada à representação para pública incondicionada. Entretanto, em contrassenso, o Legislador determinou a obrigatoriedade de assistência de advogado ou defensor público às vítimas do crime de racismo.

    A intenção do dispositivo legal é evidente: visa a uma proteção da vítima contra a revitimização do processo judicial, evitando o destrato de atores do processo judicial, como Ministério Público, Juiz(íza) ou até mesmo advogado(a) da parte contrária, caminhando no mesmo sentido da Lei Mariana Ferrer de proteção às vítimas e testemunhas (Lei n.º 14.245/21).

    Aliás, ao retirar o direito de representação da vítima no crime de injúria racial, que a rigor é um crime cometido diretamente contra uma pessoa determinada, sendo essa diretamente interessada em eventual processo judicial, o Legislador relenta a vítima a um papel puramente de testemunha, sem qualquer protagonismo no processo judicial.

    Apesar da intenção de proteção da vítima, toda literatura em criminologia crítica, a qual me filio integralmente, há décadas aponta para a falência da legitimidade do Sistema Penal e, dentre seus vários motivos, encontra-se justamente a impossibilidade de concretização da promessa de proteção de vítimas. Por excelência, o direito penal não protege justamente porque chega sempre após o crime estar consumado, ou ao menos tentado. Entretanto, é farta a literatura sobre processos de revitimização durante o curso de processos judiciais, sobretudo referentes ao racismo já que a vítima deve enfrentar, no processo judicial, o racismo institucional, aquele encrustado nas instituições e seus agentes, não estando imunes a ele o Judiciário e o Ministério Público.

    De toda sorte, não se pode negar o (pequeno) avanço introduzido pelo artigo 20-D que pelo menos assegura o acompanhamento do processo por parte da vítima, podendo seu advogado ou defensor público, no processo judicial, defender o seu interesse, seja qual for. Ademais, garante pelo menos à vítima um meio de se atualizar sobre o processo judicial na medida em que, caso não seja parte processual, somente terá notícia da ação quando for chamada a depor em juízo. Entretanto, não se pode deixar de apontar o contrassenso dessa medida com a retirada do direito de representação da vítima no crime de injúria racial.

    É, salvo engano, a única previsão legal de assistência de advogado ou defensor público para vítimas de crime, sendo interessante pensar na expansão dessa medida para outros delitos envolvendo pessoas socialmente vulnerabilizadas, como mulheres na Lei Maria da Penha, no feminicídio ou outro crime movido por ódio contra grupos socialmente vulnerabilizados.

    2. Homofobia e Transfobia

    Vale lembrar que todos os dispositivos previstos na Lei de Racismo devem incluir para além dos elementos “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, os elementos “sexualidade” e “gênero” conforme decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto do Mandado de Injunção 4.777 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26, a conhecida “criminalização da homotransfobia”. Assim, os crimes da Lei de Racismo também valem para práticas homofóbicas e transfóbicas destinadas à população LGBTI+.


    [1]https://www.uol.com.br/esporte/colunas/rodolfo-rodrigues/2022/07/18/racismo-no-futebol-nao-tem-fronteiras-e-parece-estar-muito-longe-do-fim.htm e https://www.brasildefato.com.br/2022/05/21/racistas-estao-cada-vez-mais-a-vontade-diz-diretor-do-observatorio-racial-no-futebol

    [2] Nas jurisprudências comentadas aqui no blog temos algumas referentes à xenofobia contra pessoas habitantes do nordeste.

    [3] PRATES, Francisco de Castilho. Constituir pela fala: notas sobre liberdade de expressão, performatividade e discurso de ódio. Culturas Jurídicas, v. 7, n. 17, pp. 277 – 301, mai./ago. 2020. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45246.

    [4] SILVA, Rosane Leal da; NICHEL, Andressa; MARTINS, Anna Clara Lehmann; BORCHADT, Carlise Kolbe. Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira. Revista Direito GV. São Paulo, n. 7, p. 445-468, jul/dez, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v7n2/a04v7n2.pdf.

    [5] MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen, 2019, p. 66

    [6] MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen, 2019, p. 24

    [7] Caso o leitor queira conferir um exemplo: https://nudiufsm.wordpress.com/2022/01/25/para-juiz-negar-o-holocausto-nao-implica-em-ofensa-ou-inferiorizacao-do-povo-judeu/. Outras decisões analisadas podem ser encontradas neste link: https://nudiufsm.wordpress.com/category/jurisprudencias-selecionadas-e-comentadas/.

    [8] MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020

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    Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

    Por Pablo Domingues de Mello

    Este é o primeiro texto de uma série de três nos quais nos estudaremos as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023, que transformou o crime de Injúria Racial em crime de Racismo, incorporando-a na Lei n.º 7.716/89.

    Em 11 de janeiro de 2023, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de posse da Ministra de Estado da Igualdade Racial, Anielle Franco, e da Ministra de Estado dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, sancionou a Lei n.º 14.532/2023 que, dentre algumas mudanças, prevê a equiparação do crime de injúria racial ao crime de racismo.

    1. Como era antes?

    Em 1988, quando promulgada a Constituição Federal, seu artigo 5º, inciso XLII, determinava que lei posterior criminalizaria o racismo, conferindo a esse delito a inafiançabilidade e imprescritibilidade e a imposição da pena de reclusão. Em 1989, apenas um ano após a promulgação da Constituição Federal, foi sancionada a Lei n.º 7.716/89, conhecida Lei Caó, criminalizando os crimes decorrentes do preconceito de raça e cor.

    Em 1997, a Lei n.º 9.459/97 alterou o artigo 1º da Lei Caó que passou a criminalizar os crimes resultantes não apenas de preconceito de raça e cor, mas de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Alargou-se, portanto, o conceito de racismo para abarcar preconceitos não só resultantes de discriminação por raça e cor, mas etnia , religião (preconceito religioso) e procedência nacional (xenofobia). Essa é a redação que se mantém até os dias atuai e não sofreu alteração com a nova lei ora em análise.

    Na Lei do Racismo encontravam-se previstos 12 (doze) crimes, e todos levam em consideração o preconceito e a discriminação a partir de elementos como raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há, por exemplo, crime a quem “Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador” (artigo 5º da Lei n.º 7.716/89). Para caracterização desse delito, é imprescindível que o acesso a estabelecimento comercial, por exemplo, seja impedido por meio de preconceito ou discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

    Em contrapartida, o Código Penal previa em seu artigo 140, §3º, o chamado crime de Injúria Racial. Era (e ainda é, com algumas alterações) a forma qualificada do crime de injúria, isto é, previa pena distinta quando o crime de injúria (ofensa à dignidade de alguém) era praticado por meio da utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, procedência nacional, religião, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

    A antiga pena do crime de injúria racial era de 1 (um) ano a 3 (três) anos de reclusão mais multa.

    A diferença que residia entre o crime de racismo e o de injúria racial, para além das penas, era que aquele consistia em ofensa a um coletivo de pessoas, apesar da possibilidade do seu direcionamento a uma pessoa determinada (como no exemplo de impedir acesso a estabelecimento comercial), enquanto que a injúria racial consistiria no crime de injúria, portanto ofensa a dignidade e decoro de uma pessoa, utilizando-se de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

    Na realidade, dos 12 (doze) crimes previstos na Lei de Racismo, antes da nova alteração legal, apenas o crime previsto no artigo 20 se confundia em parte com a injúria racial:

    Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

    Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

    Esse dispositivo legal se assemelha com o da antiga injúria racial na medida em que uma conduta poderia ser interpretada como um ou outro delito. Para solucionar a lacuna legislativa, a construção da jurisprudência e da doutrina, simplificadamente, caminhou em diferenciar as duas condutas, racismo e injúria racial, a partir da vítima atingida e do dolo do agente, isto é, da intenção dele ao praticar a discriminação ou preconceito motivado em elementos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

    Por exemplo, em sendo uma vítima determinada e estar presente o dolo de ofender a dignidade ou decoro dela, configurar-se-ia, em tese, o crime de injúria racial, já que esse delito visa proteger a dignidade e autoestima da vítima, abalada pelo uso discriminatório ou preconceituoso de elementos ligados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Em sendo o preconceito ou discriminação destinados a uma coletividade a partir de elementos relativos raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e o dolo do agente seja de ofender a toda uma coletividade indeterminada de indivíduos ligados entre si pelos elementos acima descritos, estar-se-ia configurado, em tese, o crime de racismo do artigo 20.

    Entretanto, duas diferenças cruciais residiam entre ambos os delitos: o crime de racismo é imprescritível e inafiançável e a ação penal é pública incondicionada, isto é, o Ministério Público detém a titularidade para oferecer a denúncia enquanto o crime de injúria racial não era nem imprescritível e nem inafiançável, bem como a ação era pública condicionada à representação, isto é, o Ministério Público ainda era o titular da ação penal, mas dependia da anuência da vítima que poderia escolher por representar, ou não, criminalmente contra o agressor.

    Agora, tudo restou unificado como veremos.

    1. Como fica?

    A Lei n.º 14.532/2023 não aboliu o crime de injúria racial, apenas o deslocou do Código Penal para a Lei n.º 7.716/89. A alteração legislativa inseriu o artigo 2º-A na Lei 7.716/89 e modificou a redação da Injúria qualificada (antiga injúria racial) do artigo 140, §3º, do Código Penal.

    As novas redações ficaram as seguintes:

    Injúria Racial (artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89):

    Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Injúria Qualificada (antiga injúria racial – artigo 140, §3º, do Código Penal):

    Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

    § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:        (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.       (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Percebe-se, portanto, que houve apenas o deslocamento da injúria racial para dentro da Lei do Racismo e a atual redação da injúria qualificada mantém os elementos “religião, condição de pessoa idosa ou com deficiência”, sendo essa a atual forma qualificada da injúria, agora não mais denominada injúria racial, sendo essa aquela constante no artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89.

    A injúria racial mantém os elementos “raça, cor, etnia e procedência nacional”, estando excluída, portanto, da injúria racial, os elementos “religião, condição de pessoa idosa e pessoa com deficiência”.

    A pena da injúria qualificada manteve-se a mesma.

    A pena da injúria racial foi de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa. Fica, portanto, afastada a possibilidade do réu por injúria racial fazer uso do benefício da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95) em razão da pena mínima superar o patamar de 01 (um) ano exigido pela lei.

    A ação penal por crime de Injúria Racial passa a ser pública incondicionada, portanto de titularidade do Ministério Público sem que haja necessidade de representação da vítima para continuidade da ação.

    A Injúria Racial passa, agora, a ser inafiançável e imprescritível, apesar de já ter havido em 2021 decisão do Supremo Tribunal Federal, no HC 154.248 julgado pelo Plenário, que estendida os efeitos da imprescritibilidade ao antigo crime de injúria racial.

    A alteração legislativa da Lei n.º 14.532/2023 sedimenta o debate antigo da diferença entre injúria racial e racismo na medida em que, atualmente, a injúria racial é uma forma de racismo, ou seja, um dos crimes previstos pela Lei de Racismo.

    De plano podemos verificar haver uma incongruência no texto legal. O artigo 1º da Lei de Racismo estipula que essa violência é cometida quando há “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A antiga redação do crime de injúria racial previa todas essas formas de preconceito e discriminação e adicionava a “condição de pessoa idosa ou com deficiência”.

    Houve, como dito, o deslocamento do crime de injúria racial para a Lei de Racismo, mantendo, ainda, a forma qualificada da Injúria no Código Penal. Entretanto, na transposição da injúria racial para a Lei de Racismo, o Legislador manteve o “preconceito ou discriminação de religião” como forma qualificada do crime de injúria (no Código Penal) e não o levou para a Lei de Racismo, apesar da própria lei de racismo prever que o racismo se manifesta no preconceito ou discriminação em razão da religião.

    A redação atual da injúria qualificada inclui a prática de injuriar alguém com o uso de elementos referentes a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência”. Isto é, parece que o Legislador “esqueceu” que a injúria praticada com o uso de elementos de preconceito ou discriminação religiosa, na verdade, constitui crime de racismo, sobretudo porque o próprio artigo 1º da Lei de Racismo assim dispõe:

    Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.       (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

    Me parece, portanto, que errou o legislador ao não deslocar a injúria qualificada por preconceito ou discriminação religiosa para dentro da, agora, nova Injúria Racial na Lei de Racismo. O que parece, a partir da leitura do artigo 1º da Lei n.º 7.716/89, é que o Legislador realmente esqueceu do preconceito ou discriminação religiosa.

    É evidente que essa forma de preconceito ou discriminação é voltada para religiões marginalizadas e criminalizadas no Brasil, tais como aquelas de matriz africana e aquelas praticadas pelos povos originários. Inclusive, é essa a melhor interpretação a ser dada justamente pela advertência muito bem incluída no artigo 20-C da Lei de Racismo, que será em breve melhor comentado.

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    CÂMARA DOS DEPUTADOS APROVA PROJETO DE LEI QUE TRANSFORMA PEDOFILIA EM CRIME HEDIONDO

    Por Pablo Domingues de Mello

    O plenário da Câmara dos Deputados, no dia 09 de novembro de 2022, aprovou o Projeto de Lei n.º 1.776-C/2015 [1], de autoria dos Deputados Federais Paulo Freire (PR/SP) e Clarissa Garotinho (UNIÃO/RJ) que torna crime hediondo crimes relacionados à prática de pedofilia, como prática de ato sexual na presença de criança ou adolescente, corrupção de menores de 14 anos de idade e o registro e divulgação de cena de estupro de vulnerável. O projeto, ainda, aumenta as penas de uma série de crimes ligados à pedofilia

    Por lei, a pedofilia em si não é considerada crime. Contudo, práticas de pedofilia, isto é, relações sexuais com crianças e adolescentes, são criminalizadas, como o estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal) que é a prática de conjunção carnal ou ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. Também se insere nesse contexto o crime de prática de pedofilia pela internet (artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente) que consiste em vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.

    Das condutas caracterizadas como pedofilia, a Lei dos Crimes Hediondos inclui hoje apenas o estupro de vulnerável e o favorecimento da prostituição de criança, adolescente ou vulnerável.

    A Lei 8.072/1990 estabelece os crimes hediondos e, como consequência, os condenados por esses crimes têm uma série de restrições, como a obrigatoriedade de o regime inicial de cumprimento de pena ser o regime fechado, são insuscetíveis de graça, anistia, indulto e fiança.

    O texto aprovado modifica, ainda, a Lei de Execução Penal para prever que, nos casos de saída temporária de presos, aqueles condenados por crimes de pedofilia sejam proibidos de se aproximar de escolas de ensino infantil, fundamental ou médio, e de frequentar parques e praças que contenham parques infantis e outros locais que sejam frequentados predominantemente por menores de 18 anos. Também estabelece monitoração eletrônica para condenados por pedofilia. 

    Atualmente, para progressão de regime na execução penal é exigido o cumprimento de 40% da pena se o condenado for primário, 50% caso o condenado seja primário e o crime tenha como resultado morte ou posição de comando da organização criminosa e 60% para condenados por crime hediondo reincidentes em crime hediondo (artigo 112 da Lei de Execução Penal). Ademais, caso seja o condenado por crime hediondo reincidente em crime comum (não hediondo), deverá cumprir 40% da pena para progressão de regime (ARE 1.327.963, Plenário STF, rel. Min. Gilmar Mendes).

    Com o projeto aprovado, o condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado contra criança ou adolescente terá que cumprir 50% da pena para progressão de regime e 70% se for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional ou reincidente em crime hediondo ou equiparado contra criança ou adolescente.

    O projeto aprovado segue, agora, para votação no Senado Federal. Caso aprovado, passará para promulgação do Presidente da República.


    [1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1301482

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    Redes sociais, discursos de ódio e moderação de conteúdo: há algo que pode ser feito?

    Por Pablo Domingues de Mello

    O contexto político brasileiro há anos vem sendo tomado por agressividade, violência verbal e física, e politização das massas, ainda que por vias controversas como o uso de desinformação e fake news para manipulação das massas. As violências verbais que antes eram restritas ao convívio pessoal hoje não mais encontram fronteiras ou barreiras físicas graças ao advento da internet, e em especial das redes sociais, representando essas não apenas um ambiente de potencialização de vozes silenciadas, mas, em uma dimensão negativa, a exposição de grupos socialmente vulnerabilizados a uma forma mais potente de uma violência há muito presente: o discurso de ódio.

    Nesse sentido, o direito precisa tanto fornecer respostas sobre os limites da liberdade de expressão a partir de uma visão constitucional sobre a nossa Constituição Federal – parece óbvio, mas por vezes esquece-se que nosso direito é analisado a partir do nosso contexto normativo. Além, é dado ao direito, também, o dever de esclarecer qual o papel dos provedores e plataformas de redes sociais na mitigação e prevenção dos danos causados por discursos de ódio, seja no campo político, seja na afetação ao direito, intimidade e dignidade das pessoas atingidas por essa violência, direta ou indiretamente.

    A partir dessas provocações, Daury Cesar Fabriz e Gabriel Heringer de Mendonça, produziram artigo científico com o objetivo de desvelar o papel das plataformas de redes sociais no combate ao discurso de ódio. O trabalho intitulado “O papel das plataformas de redes sociais diante do dever de combater o discurso de ódio no Brasil” foi publicado em 2022 na Revista da Faculdade de Direito da UFPR no volume 67, número 1, páginas 127-149. A investigação contou com uma metodologia de abordagem dedutiva a partir do emprego de um procedimento bibliográfico, com uma revisão da bibliografia, da legislação e da jurisprudência existentes sobre o tema.

    O texto traça breves bases de discussão ao conceituar liberdade de expressão no ordenamento jurídico brasileiro. Aqui, a liberdade de expressão recebeu em 1988 status de direito fundamental na Constituição Federal e como tal merece e recebe atenção especial, proteção e garantia por parte do Estado a partir de um dever de abstenção (um direito negativo). Nesse sentido, partindo de uma interpretação completa da nossa Constituição Federal, percebe-se que desde 1988, ano da promulgação da Carta Magna, ela mesma já trouxe limites ao exercício da liberdade de expressão, como a criminalização do racismo, vedação ao anonimato e a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Todos esses direitos em mesmo grau de igualdade: direitos fundamentais essenciais ao exercício de um Estado Democrático de Direito, pelo menos nos moldes pensados pela Constituição de 1988.

    Aliás, nesses tempos turvos que vivemos, a interpretação completa da Constituição Federal tem sido tarefa hercúlea, já que grupelos fascistas e proto fascistas preferem não ver o que a Constituição diz, mas o que eles gostariam que ela dissesse. É evidente que a Constituição apesar de ser a base fundante do Estado que vivemos não encontra-se livre de crítica, tem sido criticada há anos! Entretanto, nenhuma crítica pode se basear em uma pretensão de abolição da democracia, ainda que burguesa, porque isso representa não o interesse social, mas o interesse particular de grupos golpistas que, muitas vezes, sequer sabem o que defendem.

    Essa crítica pode ser exprimida a partir da leitura do texto de Daury e Gabriel, que defendem, corretamente, a inexistência de um suposto direito absoluto a liberdade de expressão. Defensores dessa linha baseiam-se em grande medida no tratamento dado pelo Estados Unidos da América sobre a liberdade de expressão, inclusive tratamento muito criticado por autores estadunidenses.

    Curioso é, contudo, que a defesa por um direito absoluto à liberdade de expressão (leia-se: sem restrição alguma) parte de uma base normativa, teórico e filosófica situada em um país de contexto histórico, social e político totalmente distinto como os EUA. Entretanto, essa importação – acrítica – não se atenta nem para as diferenças entre Brasil e EUA, nem para as críticas existentes a essa doutrina nos próprios EUA, muito menos para as previsões expressas e claras da própria Constituição brasileira, que repudia qualquer noção de uma liberdade de expressão absoluta que sirva de escudo a práticas violentas como o discurso de ódio.

    Qualquer análise, então, não situada em nosso contexto normativo, nossa história constitucional e social não se possui qualquer base normativa-jurídico-constitucional, mas apenas um desejo do que gostaria que fosse o direito à liberdade de expressão, não efetivamente o que ele é. Mesmo nesse prisma, em um campo filosófico, a contradição de um direito absoluto acima dos demais direitos constitucionais revela não um apreço pela liberdade irrestrita de expressão, mas por uma liberdade irrestrita de oprimir haja vista que no contexto do capitalismo burguês heterossexual, cisgênero, branco e masculinizado, as diferentes vozes encontram diferentes amplitudes, espaços de acesso e espaços de poder (Akotirene, 2018; Butler, 2021; Bibbings, 2004; Borrillo, 2016; Bonassi, 2017; Bourdieu 1989 e 2020; Biroli, 2013; de Almeida, 2018; Domingues, 2020; Flauzina, 2006 e 2014; Fanon, 2015; Foucault 2014, 2014b, 1984).

    Daury e Gabriel deixam claro:

    Diante de um conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, não é possível sustentar a prevalência daquela, de forma prévia e sem a análise dos fatos. Isso porque não existe uma hierarquia de direitos fundamentais exposta na Constituição. Logo, diante de um caso de colisão entre a liberdade de expressão e a inviolabilidade da honra/imagem/intimidade, é necessária a análise do caso concreto.

    O critério de análise do caso concreto é aquele elaborado a partir da teoria defendida por Alexy (1992) e inclusive aplicado pela Suprema Corte brasileira, em casos paradigmáticos como o caso Ellwanger (HC 82.424), criminalização da homotransfobia (ADO 26 e MI 4733) e pelo Superior Tribunal de Justiça em caso como o da aplicação da Lei de Racismo (Lei 7.176/89) em caso de preconceito contra pessoas moradoras do nordeste brasileiro (REsp 1.569.850).

    Faz emergir nesse contexto, e muito bem conduzido pelos autores do texto, o debate acerca do discurso de ódio e essa forma de violência representar legítima restrição do direito fundamental à liberdade de expressão. Para eles, e eu concordo, o discurso de ódio é definido por seu conteúdo, forma e tom empregado pelo emissor, assim como a motivação: “Tais características, que permeiam o discurso, permitem identificar situações de abuso do direito de liberdade de expressão, na medida em que importem em ataques a outros direitos fundamentais previstos na Constituição da República e que deterioram o ambiente democrático”. Ainda, o discurso de ódio, acrescendo, deve estar vinculado necessariamente a características pessoas(ais) da(s) vítima(s) que estejam vinculadas às estruturais sociais vulnerabilizantes apontadas pelos autores Daury e Gabriel como sendo “raça, de gênero, de orientação sexual e de origem/nacionalidade.”.

    Por isso, na mesma linha do defendido pelo professor Daniel Sarmento (2006), Daury e Gabriel sustentam que a liberdade de expressão não deve comportar o discurso de ódio, pois, além do aspecto moral, o preconceito e a intolerância veiculados em seu conteúdo não contribuem para um debate racional, gerando o comprometimento da continuidade da discussão.

    Resgato o que defendi acima, nem por um aspecto normativo-constitucional, nem filosófico, nem moral, a liberdade de expressão, direito fundamental tão caro a uma democracia tão jovem quanto a brasileira, pode e dever ser utilizado como escudo protetor para condutas agressivas, violentas, degradantes, desmoralizantes e que se soma aos preconceitos e discriminações estruturais e institucionais existentes na sociedade para propagar o ódio e eliminação de pessoas socialmente vulnerabilizadas.

    Surge, pois, o chamado dever fundamental de combate ao discurso de ódio, uma dimensão constitucional relacionada com os direitos fundamentais. Na lógica constitucional e interpretada por Daury e Gabriel, tomando de partida os ensinamentos de Lyra et. al. (2020) os direitos fundamentais pressupõem deveres fundamentais, haja vista que qualquer direito denota “o cumprimento de ao menos um dever, tanto para os poderes públicos (deveres de proteção) como para as pessoas (deveres fundamentais)”.

    Direitos e deveres fundamentais, então, apesar de sua imbricada relação, são identificáveis perante uma autonomia e marcados por uma ausência de ordem prevalente. Há, pois, um equilíbrio entre direitos e deveres fundamentais sendo esses últimos voltados para

    […] proporcionar as bases materiais para existência e funcionamento da sociedade e para a concretização dos direitos fundamentais de todos, decorrentes de uma ordem jurídica democrática, com posição de primazia normativa e controle de revisão (fundamentalidade formal), cujos conteúdos integram o estatuto da pessoa, formado por direitos e deveres fundamentais e orientado pela dignidade da pessoa humana (fundamentalidade material) (LYRA et. al, 2020, p. 69)

    Assim, defendem Daury e Gabriel, a existência de um dever fundamental de atuação contra o discurso de ódio, na medida em que este gera a segregação e a discriminação de pessoas determinadas ou grupos, em uma logica de exclusão, de preconceito e de intolerância. Essa defesa decorre especialmente do direito fundamental à liberdade de expressão quanto do princípio da dignidade humana, representada nos direitos fundamentais tais como igualdade (artigo 5º, caput, da Constituição Federal); igualdade de gênero (artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal); inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal) e criminalização do racismo[1] (artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal).

    Por fim, a partir das provocações acima elencadas pelos autores, eles introduzem a internet como ambiente de análise do conflito entre liberdade de expressão, discursos de ódio e o dever fundamental do Estado e da sociedade civil em combater o discurso de ódio. Especialmente, os autores centram sua análise nas redes sociais, essas definidas como “um serviço ofertado na internet, no qual os indivíduos constroem seu próprio perfil (aberto ou não) e criam uma lista de outros usuários com os quais compartilham uma conexão, permitindo, assim, que eles se comuniquem entre si e que um visualize e compartilhe a lista de contatos do outro” (Boyd; Elisson, 2008, p. 211).

    São, pois – as redes sociais – na palavra dos autores “empreendimentos privados, nos quais os usuários atuam como um webmaster de si mesmo, enquanto o fornecedor atua como um provedor de hospedagem e se vale do conjunto de dados divulgados pelo usuário para contratar anunciantes, que oferecem produtos de acordo com as preferências que são declaradas” (p. 137).

    Como componentes da internet, responsável por criar uma sociabilidade virtual, o ciberespaço, as redes sociais são atravessadas por estruturas computacionais, tecnológicas tais como algoritmos e marcas de governança privada permeadas por interesses, valores e códigos privados. Não são dados ontológicos retirados da natureza porquanto são produtos direto da produção humana e, portanto, enviesadas.

    Tratando especificamente das redes sociais, os autores trabalham a partir do contexto normativo brasileiro, resgatando as disposições do Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/2014), um divisor de águas na relação das plataformas de redes sociais no Brasil. Até a promulgação da lei, jurisprudência e doutrina jurídica discutiam a responsabilidade de plataformas de redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Youtube, a respeito de conteúdos publicados em suas redes, em especial aqueles com conteúdo ilício (como o discurso de ódio). O Marco Civil da Internet normativiza e adota um posicionamento de privilégio da liberdade de expressão em detrimento de outros direitos ao assegurar, em seus artigos 18 e 19, a isenção das plataformas de responsabilidade pelo discurso divulgado por terceiros, fazendo surgir uma obrigação dela apenas após notificação judicial para tanto.

    É possível perceber que as disposições contidas no Marco Civil da Internet vão de encontro com a teoria de Alexy antes apresentadas, bem como as premissas adotadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça ao atribuir de forma prévio um privilégio maior à liberdade de expressão em detrimento de outros direitos. A partir do posicionamento apresentado anteriormente, a restrição de um direito fundamental em detrimento de outro apenas poderia ocorrer a partir da análise do caso concreto e não previamente estabelecido.

    Por isso, Daury e Gabriel apontam para uma “falta de proteção gerada para a vítima” (p. 140), a qual necessita buscar o Judiciário para fazer cessar uma violação de seu direito, algo custoso porquanto depende ou da atuação da Defensoria Pública, mediante empenho de recursos públicos, ou de advogados privados, mediante empenho de valores financeiros da vítima.

    Assim, com a quase desoneração do Estado na regulação da matéria, as plataformas de redes sociais, por meio de instrumentos de governança privada, regulam a comunidade através de termos celebrados pelos usuários, responsáveis por determinar quais condutas serão, ou não, aceitas (p. 141). Parte-se, pois, de uma premissa de inexistência de neutralidade das redes, diante da expressiva atuação de filtros e derrubadas de conteúdos ilícitos (contrários ao Direito) ou proibidos (contrários às normas de uso da rede social).

    Representa-se esse modelo, portanto, a partir de um modelo estadunidense, de uma lógica de controle posterior, “mediante sistema de denúncias por parte dos usuários. Esse tipo de mecanismo é conhecido como flagging e, geralmente, desencadeia um processo de revisão feito por moderadores humanos” (p. 141). Esse modelo é adotado pela gigante das bigtechs, a Facebook (atual Meta), dentre outras plataformas de redes sociais.

    Por meio do auxílio da tecnologia, como algoritmos, as redes sociais valem-se de mecanismos que trabalham na lógica do visível/invisível, realizando direcionamento e determinando a maior exposição de dado conteúdo, e, assim, estimulando ou não a divulgação de informações sobre certo tema. Nessa lógica, o algoritmo trabalha para identificar preferências dos usuários e, dessa forma, estimular sua navegação (p. 142). Há, ainda, uma problemática envolvendo o quê é definido como conteúdo não permitido pelas redes sociais, já que os critérios adotados pelas empresas, consequentemente pelos moderadores de conteúdo e processos de automatização, mudam e são orientados por um standard normativos aberto e vago, baseado em um complexo sistema de regras internas em um paradigma de governança privada.

    Por fim, os autores chamam atenção para o que devem ser desempenhado pelas plataformas de redes sociais no combate do discurso de ódio, chamando atenção para um constitucionalismo digital (Nitrini, 2021, p. 132). Nessa perspectiva, o constitucionalismo seria atualizado para o ambiente digital, em especial a noção de eficácia horizontal de direitos fundamentais entre particulares. Além do dever fundamental de atuação contra o preconceito e a discriminação, o modelo de controle de discurso de ódio implementado pelas plataformas de redes sociais segue a ótica de negócio, como uma exigência do mercado para angariar cada vez mais usuários, por meio da necessidade de manutenção de um ambiente seguro e atraente para seus consumidores (Balkin, 2018, p. 2.022).

    Reside a problemática em torno do excesso de liberdade das plataformas digitais de redes sociais em editar regras, sendo essas regras dotadas de uma falta de transparência sobre os critérios utilizados na moderação de conteúdo. Soma-se a isso a falta de um devido processo no qual o usuário bloqueado ou removido possa argumentar e tentar reverter a ação da plataforma (p. 144). Os autores concluem, então, que “o importante não é buscar anular a atuação das plataformas de redes sociais na moderação do discurso, mas sim investir no fortalecimento da relação entre Estado e empresas de infraestrutura de internet. A atuação conjunta das duas esferas é essencial para o sucesso no combate ao discurso de ódio e para a manutenção do nível necessário de liberdade de expressão.”

    No estágio atual do ciberespaço, as redes sociais detêm o controle, dirigindo o poder tradicional do Estado, de modo que às empresas de redes sociais é imposta a adoção de meios rápidos e de custos menores para agir nas situações necessárias. Também não se pode perder de vista, evidente, a necessidade de atuação governamental na regulação do ciberespaço, sob pena da lógica da atividade empresarial das redes sociais ser pautada por critérios de mercado e não pelos critérios constitucionais e legais existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

    Partilho da ideia e solução dos autores, adicionando que o modelo de governança privada das redes sociais é importante sobretudo pensando em soluções de prevenção ao discurso de ódio. Por exemplo, por meio da tecnologia – que existe – as plataformas de redes digitais poderiam criar mecanismos de verificação de conteúdo antes da sua postagem, isto é, o usuário seria notificado antes de efetuar uma postagem sobre a possibilidade daquele conteúdo ferir direitos alheios e por consequência sofrer sanções legais e internas, das próprias diretrizes da plataforma.

    É, ao meu sentir, um exemplo reformista de bom uso do algoritmo para identificar possíveis conteúdos marcados por discurso de ódio e tentar impedir a sua postagem que, se ocorrer, o usuário esteve previamente advertido das consequências legais da sua conduta.

    Acredito que os problemas relacionados ao mau uso das redes sociais e a negligência do mercado e dos Estados em buscar uma real regulação do ciberespaço está muito mais relacionado a um problema estrutural, do modo de produção capitalista, do que conjuntural, ligado a uma política ou outra adotada por Estados e empresas. Entretanto, em um contexto de busca por soluções mais imediatas, acredito que a imposição por parte do Estado para que as empresas tornem públicas, claras e em linguagem acessível os termos de uso e conduta das suas plataformas, o uso de algoritmos para retirada de conteúdos ofensivo do ar, bem como a prevenção de sua postagem conforme apresentado acima, e, por fim, a refundação da responsabilização civil das empresas por danos praticados por terceiros são alguns caminhos para iniciar uma discussão mais profunda sobre a prevenção e remediação de discursos de ódio praticados nas redes sociais.

    REFERÊNCIAS:

    AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Justificando, 2018

    ALEXY, Robert. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. Tradução Luís Afonso Heck. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, v. 17, 1992.

    BALKIN, Jack M. Free Speech is a triangle. Columbia Law Review, New York, v. 118, n. 7, p. 2.011-2.055, 2018.

    BIBBINGS, Lois. Heterosexuality as Harm: Fitting In. HILLYARD, Paddy; PANTAZIS, CHRISTINA; TOMBS, Steve; GORDON, Dave. Beyond criminology: taking harm seriously. London: Pluto Press, 2004

    BIROLI, Flávia. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013

    BONASSI, Brune Camilo. Cisnorma: Acordos Societários sobre o Sexo Binário e Cisgênero. 2017. 121f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/182706. Acesso em: 16 mai. 2022

    BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 1a ed., 2016

    BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner, 18a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020

    BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989. Disponível em: https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/06/BOURDIEU-Pierre.-O-poder- simb%C3%B3lico.pdf. Acesso em: 07 mai. 2022

    BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021

    DE ALMEIDA, Silvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018

    DOMINGUES, Pablo. O amor que não ousa dizer o nome: o discurso de ódio LGBT+fóbico e a criminalização da homotransfobia pelo Supremo Tribunal Federal. 2020. 98f. Monografia (Graduação em Direito) – Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2020

    FABRIZ, Daury Cesar; MENDONÇA, Gabriel Heringer de. O papel das plataformas de redes sociais diante do dever de combater o discurso de ódio no Brasil. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, v. 67, n. 1, p. 127-149, jan./abr. 2022. ISSN 2236-7284. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/83904. Acesso em: 30 abr. 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rfdufpr.v67i1.83904

    FLAUZINA, Ana Luiza. As Fronteiras Raciais do Genocídio. Revista de Direito da Universidade de Brasília, vol. 1, n. 1, jan.-jun., p. 119-146, 2014

    FLAUZINA, Ana Luiza. Corpo Negro Caído no Chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/5117. Acesso em: 27 abr. 2022

    FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2014

    FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 4a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42a ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014b

    LYRA, J. F. D. C. et al. A era dos deveres: a necessidade de um estatuto da pessoa humana para a eficácia social dos direitos fundamentais. Revista Mexicana de Derecho Constitucional, Ciudad de México, n. 43, jul.-dic. 2020.

    NITRINI, Rodrigo Vidal. Liberdade de expressão nas redes sociais: o problema jurídico da remoção de conteúdo pelas plataformas. Belo Horizonte: Dialética, 2021.

    SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: https://bit.ly/388mDPK. Acesso em: 8 nov. 2022


    [1] Entendendo-se, aqui, o racismo, inclusive, como dimensão da homotransfobia, protegendo assim integrantes da comunidade LGBTI+ conforme decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26 e no Mandado de Injunção n.º 4733

    Em destaque

    Plataforma TIC Kids publica pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil

    Por Eduarda Marion

    A plataforma digital TIC Kids Online Brasil, que tem como objetivo a produção de evidências sobre o uso da Internet por crianças e adolescentes no Brasil, publicou um Resumo Executivo, versão 2020, divulgando dados interessantes a respeito do crescente uso da internet e de plataformas digitais pelas crianças e adolescentes durante o ano de 2020. Destaca-se que a publicização desse resumo dispõe aos pesquisadores da área uma fonte de dados fundamental para somar em suas pesquisas, uma vez que são geradas evidências sobre oportunidades e riscos associados ao uso da Internet por indivíduos de 9 a 17 anos no país. 

    Dentre as informações abordadas no resumo, percebe-se que o contexto pandêmico instaurado pela COVID-19, somado a necessidade de adaptação da sociedade frente a situação, corroborou para o aumento de computadores nos domicílios brasileiros, bem como para a presença on-line de crianças e adolescentes. Ocorre que, em que pese a crise sanitária tenha submetido os menores de idade ao uso de tecnologias para dar segmento ao processo de educação e atividades escolares, consequentemente, a adoção de atividades de ensino remoto intensificou o uso da rede para busca de informações. Conforme dados da TIC Domicílios 2020, houve um crescimento na proporção de usuários da rede de 10 a 17 anos que realizaram atividades ou pesquisas escolares, de 72% em 2019, para 89% em 2020.

    Nesse segmento, também chama atenção o uso de redes sociais por crianças e adolescentes em 2020, principalmente em relação ao Instagram (35%) e TikTok (27%), reportadas como as redes sociais mais utilizadas por esse público, cujas funcionalidades centrais estão no compartilhamento e acesso a vídeos. Curioso o fato de que há uma porcentagem significativa de crianças e adolescentes que dispuseram tempo para assistir vídeos do fenômeno conhecido como unboxing,através dessas plataformas. Tal fenômeno é um dos principais meios pelos quais crianças e adolescentes entram em contato com a divulgação de marcas na rede. A pesquisa revela que dentre os produtos encontram-se em evidência: telefones celulares, tablets ou computadores (61%); roupas e sapatos (55%); comidas, bebidas ou doces (53%); videogames ou jogos (52%); e maquiagem ou outros produtos de beleza (46%).

    Para tanto, considerando os dados apresentados pela pesquisa, é evidente a crescente imersão de crianças e adolescentes no ambiente digital. Logo, percebe-se o aproveitamento das empresas em utilizar das redes para divulgar de forma exacerbada seus produtos através dos vídeos assistidos pelas crianças e adolescentes nas plataformas digitais.

    A íntegra da pesquisa mencionada pode ser acessada neste link.

    O armazenamento de dados pessoais sensíveis através da biometria facial em autistas e o princípio da não-maleficência/beneficência

    Por Noemi de Freitas Santos1

    A notícia a ser analisada e comentada é sobre a utilização da biometria facial por um plano de saúde, envolvendo a coleta de dados em crianças com deficiência dentro do transtorno do espectro do autismo (TEA). O fato ocorreu na Cidade de Guarulhos, interior de São Paulo, e o procedimento acabou causando desregulação nos referidos usuários.

    Uma breve introdução sobre o caso em análise:

    Uma criança beneficiária do plano de saúde da Unimed Guarulhos e com transtorno do espectro do autismo foi surpreendida com a informação de que, para acessar às terapias de que necessitava precisaria passar pelo sistema de biometria facial, que segundo nota de esclarecimento da empresa, foi implantado em 20162, mas durante a pandemia de COVID-19, houve a necessidade de melhoria desta tecnologia, evoluindo para a sua implantação no ano de 2021.

    A menor de idade estava acompanhada pela mãe, que é a beneficiária titular do plano de saúde em questão, no momento da abordagem para a solicitação de coleta de seus dados pessoais pelo sistema biométrico. O vídeo com imagens da criança, no qual se tentava realizar a biometria facial foi disponibilizado pela genitora da criança autista na internet, por meio de sua rede social3.

    A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrou em vigor em agosto de 2021, classifica como dados pessoais sensíveis todo o dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural, disposto no art. 5º, inciso II da LGPD4.

    Uma das definições mais aceitas do termo Inteligência Artificial (IA) é a de que se trata de sistemas que tentam pensar e agir como humanos e/ou sistemas que tentam pensar e agir racionalmente, sendo que algumas das principais áreas em que a IA vem sendo utilizada atualmente são: biometria, fiscalização de trânsito, jogos, diagnóstico médico, controle autônomo, robótica e pesquisa na internet5.

    A biometria facial consiste no reconhecimento facial, impressão digital e de voz, que serve para a identificação de pessoas, animais e coisas em um determinado ambiente e/ou para ingresso em determinada plataforma ou até mesmo acesso de moradores em uma portaria de um condomínio residencial6.

    Apesar do sistema biométrico ser estendido aos demais usuários do plano de saúde, deve-se atentar ao fato de que a doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê o melhor interesse da criança e do adolescente, sobretudo por tratar-se de infante com algum tipo de deficiência e, portanto, com vulnerabilidade agravada7.

    Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem buscado aprimorar códigos de conduta e diretrizes não vinculantes através do uso da soft law para orientar governos e mecanismos internacionais sobre o uso da inteligência artificial na área da saúde, com o surgimento do relatório8 da OMS sobre Ética e Governança da Inteligência Artificial para a Saúde.

    O documento elaborado no ano de 2021 identifica os desafios e riscos éticos com o uso da inteligência artificial na saúde, destacando seis princípios de consenso para garantir que a IA funcione em benefício público de todos os países, dentre os quais pode-se destacar o princípio da não-maleficência.

    Através do princípio da não-maleficência ou beneficência, o emprego da inteligência artificial deve monitorar a performance dos algoritmos com a finalidade de causar menos impactos em pacientes ou grupos de usuários de saúde, visando aprimorar a segurança na tentativa de proteger os indivíduos da estigmatização e discriminação9 (nota de rodapé 8 – p. 26).

    Com isso, resta evidenciado que o uso da IA através do sistema biométrico em pacientes com transtorno do espectro do autismo (TEA) deve atender à doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes disposto no Estatuto, bem como ao princípio da não-maleficência/beneficência previsto na orientação da OMS sobre Ética e Governança da Inteligência Artificial para a Saúde.

    REFERÊNCIAS

    BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 30 set. 2022.

    BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm Acesso em: 30 set. 2022.

    FRANCO; Cristiano Roberto. Inteligência Artificial. Indaial: Uniasselvi, 2017, p. 9. Disponível em: https://www.uniasselvi.com.br/extranet/layout/request/trilha/materiais/livro/livro.php?codigo=22869 Acesso em: 30 set. 2022.

    NOTA de esclarecimento. Unimed Guarulhos, 2022. Disponível em: https://www.unimedguarulhos.coop.br/Pages/noticiasinterna.aspx?nID=188&nList=GlobalNews Acesso em: 30 set. 2022.

    WORLD Health Organization. Ethics and governance of artificial intelligence for health: WHO guidance. Geneva (CH): WHO; 2021, p. 26. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240029200 Acesso em: 03/10/2022.

    1 Advogada com formação acadêmica pela Universidade Federal de Santa Maria e pós-graduanda em Direito Tributário e Previdenciário Militar. Membra da Comissão Especial da Saúde da OAB – Seccional Rio Grande do Sul. Membra Titular do Conselho Gestor do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Região Centro (CEREST-Centro). Membra da Comissão Especial da Seguridade Social da OAB Subseção Santa Maria/RS. Presidente da Comissão Especial de Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB Subseção Santa Maria/RS. Membra do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Santa Maria – Segmento Mulheres. Membra do Comitê da Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil – Núcleo de Santa Maria. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Núcleo de Direito Informacional (UFSM).

    2 NOTA de esclarecimento. Unimed Guarulhos, 2022. Disponível em: https://www.unimedguarulhos.coop.br/Pages/noticiasinterna.aspx?nID=188&nList=GlobalNews Acesso em: 30 set. 2022.

    3 Ibidem.

    4 BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm Acesso em: 30 set. 2022.

    5 FRANCO; Cristiano Roberto. Inteligência Artificial. Indaial: Uniasselvi, 2017, p. 9. Disponível em: https://www.uniasselvi.com.br/extranet/layout/request/trilha/materiais/livro/livro.php?codigo=22869 Acesso em: 30 set. 2022.

    6 Ibidem.

    7 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 30 set. 2022.

    8 WORLD Health Organization. Ethics and governance of artificial intelligence for health: WHO guidance. Geneva (CH): WHO; 2021, p. 26. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240029200 Acesso em: 03/10/2022.

    9 Ibidem.

    PLATAFORMAS DIGITAIS E INFÂNCIA: A PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO TIKTOK

    Por Jackeline Prestes Maier [1]

    Conforme destaca Silva (2019, p. 45), “as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) são disruptivas e atingem de maneira silenciosa e lúdica a tradição intergeracional”. O uso da internet, ao romper barreiras espaço-temporais, além de impactar aspectos econômicos, culturais, educacionais e sociais, modificou a infância e adolescência, revolucionando este importante estágio de desenvolvimento. Nesse novo cenário, os ambientes digitais, naturalmente, passam a ser ocupados por crianças e adolescentes, considerados “nativos digitais” (PRENSKY, 2001, p. 02). Conforme demonstram os dados apresentados pela pesquisa TIC Kids Online Brasil (2021), 93% das crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos, possuem acesso à internet. Essa porcentagem corresponde a 22,3 milhões dos usuários conectados na rede.

    Dentre as atividades realizadas por infantes e adolescentes, o uso das redes sociais, conforme indica a pesquisa, é um dos serviços mais populares. Nesse sentido, pela primeira vez, o TIC Kids Online analisou a presença de crianças e adolescentes no TikTok, trazendo dados importantes a respeito da interação dos usuários menores de idade na plataforma. A pesquisa mostra que 58% da população de 9 a 17 possui um perfil no TikTok. Ademais, respectiva rede social ocupa o terceiro lugar no ranking das plataformas digitais com o maior número de perfis de crianças e adolescentes, perdendo apenas para o número de usuários do WhatsApp e Instagram. Apesar disso, os dados demonstram o TikTok é a plataforma mais utilizada pelo público infantoadolescente, sendo indicada por 34% dos usuários como a principal rede social.

    Embora a pesquisa mencionada demonstre que crianças e adolescentes são parte significativa dos usuários presente no TikTok, os termos de uso da referida plataforma não incluem pessoas de até 12 anos como legítimos usuários dos seus serviços. Essa vedação, contudo, não impede a presença desse público na plataforma digital, bem como não acompanha medidas efetivas para impedir a criação de perfis destes usuários. De maneira oposta, “há indícios que demonstram que as plataformas não apenas sabem da presença de crianças e adolescentes em seus serviços, como coletam, tratam, compartilham e vendem milhões de pontos de dados que servem para publicidade personalizada” (ASOCIACIÓN POR LOS DERECHOS CIVILES; ASSOCIAÇÃO DATA PRIVACY BRASIL; INSTITUTO ALANA, 2022, p. 40).

    Diante desse contexto, a proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes, tema de grande relevância, ganha ainda mais importância após a entrada em vigor da Lei no 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que estabelece de forma expressa, em seu artigo 14, regras específicas para o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescente, destacando proteção especial a esse grupo e a observância ao princípio do melhor interesse da criança. Em outras palavras, “isso significa que, para realizar o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, é preciso levar sempre em consideração aquilo que melhor congregue os seus respectivos interesses” (ASOCIACIÓN POR LOS DERECHOS CIVILES; ASSOCIAÇÃO DATA PRIVACY BRASIL; INSTITUTO ALANA, 2022, p. 54).

    Assim, a LGPD buscou assegurar, de forma ainda mais incisiva, uma maior proteção aos dados pessoais de crianças e adolescentes. Para tanto, a referida legislação determina que o tratamento de dados pessoais de crianças deve ser realizado por meio do consentimento especifico de um ou ambos os genitores, sendo responsabilidade do controlador verificar a autenticidade do consentimento dado pelo responsável. Outro ponto importante, é que a LGPD impõe que os termos de uso das plataformas digitais sejam claros e acessíveis, considerando a capacidade cognitiva da criança e proporcionando, com facilidade, o conhecimento dos dados que serão coletados (BRASIL, 2018). Apesar da importância da previsão legal estabelecida, é necessário salientar que não há previsão de consentimento estabelecida para a proteção de adolescentes, que, apesar sua autonomia progressiva, também necessitam de proteção especial.

    O Instituo Alana, juntamente com o seu programa Criança e Consumo, solicitou ao TikTok informações em relação ao uso da rede social por crianças e adolescentes, com o objetivo de compreender os termos de uso e política de privacidade relacionadas à infância e adolescente, bem como a intenção de propor recomendações e estabelecer uma proteção adequada às crianças e adolescentes no ambiente online. No documento enviado a plataforma digital, o Instituo Alana (2021, p. 01) questiona se o “TikTok pretende alterar os seus termos de uso para incluir crianças com menos de 13 anos entre os seus legítimos usuários?”. Contesta, ainda, a respeito do consentimento parental para o registro de uma conta e para tratamento dos dados pessoais de crianças e adolescentes usuários da plataforma, expressamente estabelecido pela LGPD. Outra preocupação manifestada pelo Criança e Consumo no documento é em relação ao direcionamento de publicidade comportamental para crianças e a sua violação ao princípio do melhor interesse, também mencionado no caput do artigo 14 da LGPD.

    Em razão da proteção especial concedida pela LGPD (BRASIL, 2019) ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, assim como em consonância a com as demais legislações acerca da temática da infância, o documento emitido pelo Instituto Alana faz recomendações as plataformas digitais, em especial ao TikTok, para proporcionar um ambiente digital seguro e protetivo para crianças e adolescentes (INSTITUTO ALANA, 2021).

    Incialmente, recomenda a importância da observância ao recente Comentário nº 25, do Comitê dos Direitos, da ONU (2021). O documento, ratificado pelo Brasil, fornece diretrizes às empresas que exploram o ambiente digital e fornecem serviços ao público infantoadolescente, trazendo importante considerações quanto ao setor empresarial, especificamente no seu Item 35, que determina: “as empresas devem respeitar os direitos das crianças e prevenir e remediar o abuso de seus direitos em relação ao ambiente digital”, sendo que, para tanto, “Estados Partes têm a obrigação de assegurar que as empresas cumpram essas responsabilidades” (ORGANIZAÇÃO…, 2021, p. 07).

    Aconselha, ainda, a “adoção da premissa “Direitos da Criança por Design” (Children’s-Rights-by-Design)” (INSTITUO ALANA, 2021, p. 08). Em outras palavras, o Instituo Alana recomenda um design especifico para o desenvolvimento de qualquer produto ou serviço online que preste serviços direcionados ao público infantoadolescente, com a adoção de métodos, mecanismos de interação, utilização de algoritmos e demais mecanismos de acordo com os parâmetros legais estabelecidos e recomendados para infância. Em razão da LGPD não estabelecer critérios para aplicação do consentimento parental, é dever das plataformas digitais, enquanto encarregados pela Proteção Integral [2], disponibilizar alternativas, claras e acessíveis, para o efeito fornecimento do consentimento.

    Aliado a essas recomendações, o Instituo Alana (2021, p. 10) ressalta a importância da “elaboração de campanhas para divulgação da política de privacidade e termos de uso do aplicativo, em atenção ao disposto no artigo 14, §6º da Lei Geral de Proteção de Dados”. Acredita-se que, somente por meio da educação digital voltada aos genitores, responsáveis e aos próprios adolescentes, com adequada comunicação, será possível estabelecer uma proteção adequada a crianças e adolescentes no ambiente online. Assim, “apesar de as informações estarem disponíveis para os usuários, (…) iniciativas de aumento da visibilização de tais documentos podem aumentar o uso adequado e seguro do serviço, impactando positivamente na experiência de todos os usuários (INSTITUO ALANA, 2021, p. 11).

    REFERÊNCIAS

    ASOCIACIÓN POR LOS DERECHOS CIVILES; ASSOCIAÇÃO DATA PRIVACY BRASIL; INSTITUTO ALANA, 2022. Dados e direitos na infância e adolescência no ambiente digital: caminhos para a proteção jurídica no Brasil e na Argentina. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.dataprivacybr.org/wp-content/uploads/2022/07/Dados-e-direitos-na-infancia-e-adolescencia-no-ambiente-digital_VF-ACES.pdf. Acesso em: 20 set. 2022.

    BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 set. 2022.

    BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 20 set. 2022.

    CGI. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da informação. TICs Kids Online Brasil. 2021. Disponível em: https://cetic.br/pesquisa/kids-online/. Acesso em: 16 set. 2022.

    DA SILVA, Rosane Leal. Ana Luz, a menina dos dedinhos mágicos: encontro entre a ficção e o Direito para pensar a proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes na internet. In. VERONESE, Josiane Rose Petry; LEAL, Rosane da Silva (Orgs). Crianças e seus direitos: entre violações e desafios. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.

    INSTITUTO ALANA, 2021. Pedido de informações e recomendações para a garantia do melhor interesse das crianças e adolescentes em relação ao uso da rede social TikTok. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://criancaeconsumo.org.br/wp-content/uploads/2021/09/1082021-carta-tiktok.pdf. Acesso em: 20 set. 2022.

    ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comentário Geral N° 25 (2021) sobre os Direitos das Crianças em relação ao ambiente digital. ONU, 2021. Disponível em: https://criancaeconsumo.org.br/biblioteca/comentario-geral-n-25/. Acesso em: 20 set. 2022.

    PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants. MCB University Press, Vol. 9, No. 5, October 2001. Disponível em: http://www.lablearning.eu/documents/doc_inspiration/prensky/digital_natives_digital_immigrants.pdf. Acesso em: 20 set. 2022.


    [1] Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria (PPGD/UFSM), na linha de pesquisa “Direitos na Sociedade em Rede: atores, fatores e processo na mundialização”. Pós-Graduada em Direito Digital pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Pesquisadora no Núcleo de Direito Informacional (NUDI/UFSM). E-mail: jackelinepmaier@gmail.com.

    [2] Art. 227 da Constituição Federal de 1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (BRASIL, 1988).

    NOTÍCIA SELECIONADA E COMENTADA 7: Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre as Fake News

    Por Pablo Domingues

    A CPMI sobre as Fake News ocorre no Congresso Nacional sob a Presidência do Senador Angelo Coronel (PSD-BA) e de relatoria da Deputada Federal Lídica da Mata (PSB-BA) e tem como objetivos principais investigar notícias falsas nas redes sociais e assédio virtual. Segundo o plano de trabalho apresentado pela relatora, outras temáticas serão abordadas durante os trabalhos, tais como:

    • Conceituação e delimitação das “fake news” e seus impactos sobre setores da sociedade;
    • Cyberbullying, aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio;
    • Consequências econômicas da produção e disseminação das notícias falsas que atentam contra a democracia no mundo; e
    • Esquemas de financiamento, produção e disseminação de “fake news” com o intuito de lesar o processo eleitoral.

    Foram aprovados mais de 50 requerimentos com convites para audiências públicas e outros 30 de convocação, sendo que nesses últimos a pessoa convocada não pode se recusar a comparecer. Entre os convidados estão personalidades que foram vítimas de ataques virtuais e de notícias falsas, acadêmicos, ativistas, jornalistas e autoridades. Já as convocações se aplicam a empresas do ramo das telecomunicações.

    Composta por 16 senadores, 16 deputados e igual número de suplentes, a CPI mista terá 180 dias para investigar a criação de perfis falsos e ataques cibernéticos nas diversas redes sociais, com possível influência no processo eleitoral e debate público.

    A primeira audiência recebeu o general de divisão Guido Amin Naves, comandante do Comando de Defesa Cibernética do Exército; Daniel Bramatti, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji); Walter Capanema, professor de Direito Eletrônico da Escola de magistratura do Rio de Janeiro; e Wilson Gomes, professor de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O site para assistir a audiência na íntegra se encontra no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=zsFfv2dfFX4&feature=emb_logo

    No dia 25 de setembro de 2019 a CPMI aprovou a convocação de nove empresas de serviços de comunicação digital e cinco provedoras de telecomunicações para prestarem depoimento. As empresas devem enviar os seus representantes legais. Foram chamadas a depor as provedoras Claro, Nextel, Oi, Tim e Vivo. Já a lista das empresas de serviços traz AM4, CA Ponte, Croc Services, Deep Marketing, Enviawhatsapp, Kiplix, Quickmobile, SMS Market e Yacows. Todas elas trabalham com comunicação direcionada por meio de mídias digitais.

    Entre os 86 requerimentos estão convites para que acadêmicos, ativistas, jornalistas e autoridades participem de sessões, embasando os trabalhos da CPI em suas diversas frentes. A comissão também convidou personalidades que foram vítimas de ataques virtuais e de notícias falsas, como o youtuber Felipe Neto, as atrizes Giovanna Ewbank, Carolina Dieckmann e Taís Araújo, a produtora cultural Paula Lavigne, o cantor Caetano Veloso e a ex-deputada Manuela D’Ávila (RS).

    Além das convocações e convites, a CPI aprovou requisições de acesso a documentos e inquéritos judiciais. Entre eles está o inquérito que o Supremo Tribunal Federal (STF) conduz desde abril contra supostas ameaças nas redes sociais contra seus membros.

    Também constam da lista inquéritos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) contra a Cambridge Analytica — empresa britânica acusada de usar dados pessoais de usuários do Facebook para fazer marketing político — e da Procuradoria-Geral da República contra o uso irregular de ferramentas digitais na campanha eleitoral de 2018.

    A comissão também solicitou acesso a relatórios do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a ocorrência de fake news nas eleições do ano passado e do Facebook sobre contas suspensas em 2018 como parte de investigação sobre perfis falsos.

    No dia 05 de novembro de 2019 foi realizada nova audiência em que foi ouvido o jornalista Allan dos Santos, do blog Terça Livre. Ele foi convocado pela CPMI por requerimento do deputado Rui Falcão (PT-SP), que o apontou como um grande disseminador de notícias falsas na internet, inclusive para beneficiar o presidente da República, Jair Bolsonaro, desde a campanha eleitoral de 2018. Allan alegou que são “as grandes empresas de comunicação que promovem desinformação”.

    O jornalista também foi inquirido sobre outras notícias divulgadas pelo Terça Livre, entre elas a que acusava grupos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) de aprovarem a pedofilia.  Fato para o qual Allan disse ter “provas contundentes”, “não apenas no Brasil como no mundo”.

    Da análise dos trabalhos até o presente momento, observa-se que a pretensão, apesar de nobre, carece de objetivo central. De fato, a investigação das fake news e a busca de meios de erradicá-las – e também as prevenir – é de suma importância e urgência, sobretudo após o período eleitoral do ano de 2018 em que houve um verdadeiro “Império das Fake News”. Contudo, a CPMI montada tenta congregar assuntos que, mesmo possuindo pontos de congruência, devem ser analisados e debatidos de forma individual.

    A exemplo disso está que, dentro do plano de trabalho da CPMI, encontra-se a missão de pesquisar o “cyberbullying, aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio” assunto esse desconectado das finalidades da pesquisa sobre fake news. Mais ainda, é necessário que esse assunto em particular seja alvo e objeto de uma investigação particular e focada. Tal assunto se tornou mais latente após os episódios passados, a exemplo o “jogo” virtual “Baleia Azul” que, de acordo com as denúncias, incentivava a pessoa ao cometimento de diversas automutilações chegando, inclusive, ao suicídio.

    Nessa linha, cumpre salientar que a CPMI, pela natureza dela, busca ouvir os mais diversos setores da sociedade, sejam acadêmicos, especialistas, ou pessoas do povo diretamente afetadas. Nesse caso, serão ouvidas personalidades que foram alvos de fake news para que essas relatem as suas experiências e violências vividas. Contudo, é importante destacar que o debate situado na CPMI deve ser, sempre, de caráter acadêmico, já que, se espera ao menos, que das conclusões da Comissão venham planos de Governo e Políticas Públicas para o combate às notícias falsas.

    Ao observar os nomes já divulgados para se apresentarem, nota-se a carência de pesquisadores da área que contribuiriam para o tratamento científico do debate. Não pretendo dizer que a contribuição de vítimas das notícias falsas não seja de suma importância, pois é, mas um debate ao nível de uma CPMI sobretudo após os episódios da eleição para Presidente da República no ano passado. Nesse ponto, é importante destacar que as vítimas chamadas para depor são atores globais e esses, mesmo na condição de vítimas, possuem uma rede de apoio e um suporte infinitamente maior em relação àquelas vítimas de classes econômicas inferiores que possuam seus direitos humanos ofendidos.

    Na opinião deste autor a ascensão das fake news não é um fenômeno ao acaso, muito pelo contrário. Compartilho da opinião de Henry Bugalho, escreve para a Carta capital, de que a ascensão de Bolsonaro e da extrema-direita faz parte de um projeto de desconexão da interpretação do mundo de seus respectivos fatos, e de uma eventual reconstrução a partir da criação de uma série de inimigos imaginários à espreita para destruírem o Brasil e seus supostos valores tradicionais. Possivelmente este projeto não visava exatamente o surgimento de uma figura despreparada como Bolsonaro, mas, sem dúvida alguma, abriu caminho para tal.

    Por fim, cumpre salientar que os parlamentares tratam sobre o cyberbullying contra políticos como uma pauta de estudo. Contudo, é importante de ser destacado que essa forma de violência pressupõe uma assimetria de poder entre agressor e vítima, o que não ocorre quando a vítima é um político, possuidor de um nítido poder superior em relação ao cidadão comum. Basicamente utiliza-se de um meio político (CPMI) para tratar de um problema, pois é um problema, mas em um viés deturpado e torpe.

    Bem, diante da quantidade de trabalho imposta à CPMI e a importância latente do assunto tratado, o que resta a nós é esperar. E, no maior otimismo possível, torcer para que dela saiam, enfim, políticas efetivas de combate à propagação de fake news e que essas sirvam a todos, sem distinção partidária.


    REFERÊNCIAS:

    CPI das Fake News inicia série de audiências públicas. Agência Senado. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/10/18/cpi-das-fake-news-inicia-serie-de-audiencias-publicas. Acesso em: 11 de nov. de 2019

    CPI das Fake News aprova plano de trabalho e convocação de empresas. Agência Senado. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/09/25/cpi-das-fake-news-aprova-plano-de-trabalho-e-convocacao-de-empresas. Acesso em: 11 de nov. de 2019

    Ouvido em CPI das Fake News defende ‘jornalismo de direita’ e diz que não recebe dinheiro do governo. Agência Senado. 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/11/05/ouvido-em-cpi-das-fake-news-defende-2018jornalismo-de-direita2019-e-diz-que-nao-recebe-dinheiro-do-governo. Acesso em: 11 de nov. de 2019

    BUGALHO, Henry. Um recado à CPI das Fake News sobre os inimigos de verdade. Carta Capital. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/um-recado-a-cpi-das-fake-news-sobre-os-inimigos-da-verdade/. Acesso em: 11 de nov. de 2019