Chegamos na última parte da nossa série de três textos sobre as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023. Na última parte vimos outras alterações promovidas para além da incorporação do crime de Injúria Racial na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89). Agora, tecerei comentários finais sobre as alterações legislativas estudadas até aqui.
- Comentário finais
Não pretendo me alongar mais, já que muito o fiz ao longo desse texto. Apenas gostaria de pontuar alguns aspectos finais.
Primeiro, por me identificar com a criminologia crítica, não vejo com bons olhos produções legislativas expansivas do Poder Punitivo, notadamente com a majoração de penas criminais ou criação de tipos penais novos. Entretanto, não se pode perder de vista que a lei ora analisada representa um marco no reconhecimento pelo Estado do racismo como violência real.
Filiou-me, também, a uma perspectiva abolicionista penal, visando a abolição da pena de prisão. Entretanto, não existe prática abolicionista penal no capitalismo. Isto é, a extinção da pena – no seu sentido mais complexo e completo e não apenas a de prisão – não é possível dentro do contexto capitalista, de modo que o abolicionismo sabe e sempre defendeu, e me filio integralmente, que o Sistema Penal nada mais faz do que cumprir um papel dentro do sistema capitalista. Para abolição da pena, portanto, é necessário primeiro a abolição dessas funções exigidas do Sistema Penal.
Dito isso, a previsão de novos tipos penais e a majoração das penas base, como no caso ora analisado, não demanda uma análise reducionista de “se criou um crime então é ruim”. Percebemos com essa nova lei, um marco na interpretação do racismo pelo Estado brasileiro, uma tentativa de redimensionamento da proporcionalidade de penas no direito penal.
A existência do direito penal, pelo menos por ora, é certa. É certo, também, que há desproporcionalidade nas penas previstas pelo direito penal brasileiro. Por exemplo, o crime te Golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal), pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão, muito conhecido nos últimos dias, cujo bem jurídico tutelado é nada mais nada menos do que a própria Democracia, possui pena menor do que o crime de Tráfico de Drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06), cuja pena é de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão.
Essa desproporcionalidade na previsão de penas para crimes com bens jurídicos distintos, mas um com clara superioridade de importância em relação ao outro, não é novidade. Agora, o que faz o Legislador criminal na Lei n.º 14.532/2023, para além de uma visão reducionista de mera “expansão do direito penal”, é corrigir parte dessa desproporcionalidade1.
Apesar do reconhecimento se dar pela via da criminalização, não se pode tratar a criação de tipos penais ou majoração de penas referentes a delitos cometidos contra grupos socialmente vulnerabilizados e esquecidos pelo Estado da mesma forma que interpretamos a expansão do Direito Penal para outros crimes, como por exemplo delitos patrimoniais e tráfico de drogas, responsáveis pelo grande encarceramento de pretos e pobres nas prisões brasileiras.
É evidente que se trata de um reconhecimento da existência do racismo e da sua gravidade para a comunidade negra. A lei inova e muito ao trazer um “guia interpretativo”, bem como positiva o racismo recreativo, conceito desenvolvido pela literatura especializada (como o citado Adilson Moreira no conceito de racismo recreativo). Isso representa um avanço, traz protagonismo de autores e autoras negros e negras e de suas produções intelectuais.
Mas é necessário cobrar. Não pode a única medida do Estado ao enfrentamento do racismo vir na forma de leis penais.
A despeito do reconhecimento legislativo, o racismo institucional apresenta-se no Judiciário e no Ministério Público, servindo de barreira ao reconhecimento da prática de racismo no cotidiano processual. A pesquisa de Thula Pires2 é sempre atual para demonstrar a dificuldade – quase que proposital – do Judiciário em reconhecer a prática de racismo. Em um Judiciário branco3, imerso no racismo institucional e naquilo que antes expliquei como racismo velado, discurso de ódio velado, reconhecer no outro a prática do racismo, no réu, pode ser reconhecer em si mesmo o racismo. E isso é demais. “Racista, eu? Jamais”.
Os crimes de racismo, especialmente o artigo 20 da Lei de Racismo, existem desde 1989. Não há novidade. Novidade seria se o Judiciário reconhecesse a sua ocorrência, já que sempre desclassificou condutas inicialmente denunciadas como Racismo pelo Ministério Público para a antiga Injúria Racial. A novidade legislativa não impede isso. O crime de injúria racial ainda persiste e pode o(a) juiz(íza) reconhecer uma conduta não como racismo, mas como injúria racial. A novidade, agora, é que injúria racial é racismo.
Por fim, não se pode cogitar no Judiciário um papel de proteção de vítimas. Toda a sua organização é voltada para o apagamento da vítima, a menor participação possível. A novidade legislativa de assistência da vítima por advogado ou defensor público é um pequeno – minúsculo – reconhecimento de dignidade da vítima. Mas não esqueçamos, a nossa Justiça jamais conseguirá assegurar a proteção das vítimas, muito menos aquilo que lhes é mais caro: a restauração da sua dignidade. Não é o Sistema Penal o caminho para erradicação do racismo, de evidenciá-lo e indicar o problema em “piadas racistas”, comentários “inoportunos” que, em verdade, são todos racismo. Velado ou não, é racismo. Piada ou não, é racismo.
O reconhecimento efetivo das dores da vítima somente é possível conferindo-lhe voz, inclusive no processo decisório, mas esse desvinculado do tradicional processo decisório do Judiciário. O protagonismo da vítima tanto no relato do sofrimento, quanto na conversa com o agressor, são elementos essenciais de um processo de reconhecimento e busca por diminuição dessa violência.
A vítima deve, pois, possuir local de destaque, mas esse jamais poderá ser concedido pelo Judiciário. O agressor, também, deve ter dimensão do dano causado e a medida responsiva à sua conduta deve(ria) responder à agressão cometida, mas a resposta do Sistema Penal é sempre redutora, genérica e jamais atenta à particularidade do conflito existente entre vítima e vitimizador. A resposta é sempre uma: pena de prisão.
Portanto, é pelo caminho de justiça restaurativa4, transformativa e fora dos muros do Judiciário como identifica Vera Andrade5, que assegure efetivamente a participação de vítimas para que tenham a oportunidade de relatar o seu sofrimento pela sua própria voz, que possam transmitir ao agressor o seu sentimento e possa o agressor também falar, ambos falando e sendo escutados em um processo pautado pela escuta atenta e pelo reconhecimento de ambas as trajetórias, é que poderemos caminhar no sentido de uma compreensão coletiva das mazelas do racismo.
1 Até essa lei o crime de furto (artigo 155 do Código Penal) apresentava pena semelhante ao do antigo crime da antiga injúria racial, 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão para o furto simples e 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para a antiga injúria racial.
2 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e legitimação do controle social sobre os negros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Brado Negro, 2016. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=34475@1
3 Segundos dados do CNJ, 80% dos magistrados brasileiros são brancos (https://www.cnj.jus.br/juiz-brasileiro-e-homem-branco-casado-catolico-e-pai/).
4 GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura para além da punição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2ª ed., 2022
5 BRASIL. Fundação José Arthur Boiteux. Universidade Federal de Santa Catarina. Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2018. 376 p. (Justiça Pesquisa). Relatório analítico propositivo. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/284.