PARTE 3 – Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Chegamos na última parte da nossa série de três textos sobre as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023. Na última parte vimos outras alterações promovidas para além da incorporação do crime de Injúria Racial na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89). Agora, tecerei comentários finais sobre as alterações legislativas estudadas até aqui.

  1. Comentário finais

Não pretendo me alongar mais, já que muito o fiz ao longo desse texto. Apenas gostaria de pontuar alguns aspectos finais.

Primeiro, por me identificar com a criminologia crítica, não vejo com bons olhos produções legislativas expansivas do Poder Punitivo, notadamente com a majoração de penas criminais ou criação de tipos penais novos. Entretanto, não se pode perder de vista que a lei ora analisada representa um marco no reconhecimento pelo Estado do racismo como violência real.

Filiou-me, também, a uma perspectiva abolicionista penal, visando a abolição da pena de prisão. Entretanto, não existe prática abolicionista penal no capitalismo. Isto é, a extinção da pena – no seu sentido mais complexo e completo e não apenas a de prisão – não é possível dentro do contexto capitalista, de modo que o abolicionismo sabe e sempre defendeu, e me filio integralmente, que o Sistema Penal nada mais faz do que cumprir um papel dentro do sistema capitalista. Para abolição da pena, portanto, é necessário primeiro a abolição dessas funções exigidas do Sistema Penal.

Dito isso, a previsão de novos tipos penais e a majoração das penas base, como no caso ora analisado, não demanda uma análise reducionista de “se criou um crime então é ruim”. Percebemos com essa nova lei, um marco na interpretação do racismo pelo Estado brasileiro, uma tentativa de redimensionamento da proporcionalidade de penas no direito penal.

A existência do direito penal, pelo menos por ora, é certa. É certo, também, que há desproporcionalidade nas penas previstas pelo direito penal brasileiro. Por exemplo, o crime te Golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal), pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão, muito conhecido nos últimos dias, cujo bem jurídico tutelado é nada mais nada menos do que a própria Democracia, possui pena menor do que o crime de Tráfico de Drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06), cuja pena é de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão.

Essa desproporcionalidade na previsão de penas para crimes com bens jurídicos distintos, mas um com clara superioridade de importância em relação ao outro, não é novidade. Agora, o que faz o Legislador criminal na Lei n.º 14.532/2023, para além de uma visão reducionista de mera “expansão do direito penal”, é corrigir parte dessa desproporcionalidade1.

Apesar do reconhecimento se dar pela via da criminalização, não se pode tratar a criação de tipos penais ou majoração de penas referentes a delitos cometidos contra grupos socialmente vulnerabilizados e esquecidos pelo Estado da mesma forma que interpretamos a expansão do Direito Penal para outros crimes, como por exemplo delitos patrimoniais e tráfico de drogas, responsáveis pelo grande encarceramento de pretos e pobres nas prisões brasileiras.

É evidente que se trata de um reconhecimento da existência do racismo e da sua gravidade para a comunidade negra. A lei inova e muito ao trazer um “guia interpretativo”, bem como positiva o racismo recreativo, conceito desenvolvido pela literatura especializada (como o citado Adilson Moreira no conceito de racismo recreativo). Isso representa um avanço, traz protagonismo de autores e autoras negros e negras e de suas produções intelectuais.

Mas é necessário cobrar. Não pode a única medida do Estado ao enfrentamento do racismo vir na forma de leis penais.

A despeito do reconhecimento legislativo, o racismo institucional apresenta-se no Judiciário e no Ministério Público, servindo de barreira ao reconhecimento da prática de racismo no cotidiano processual. A pesquisa de Thula Pires2 é sempre atual para demonstrar a dificuldade – quase que proposital – do Judiciário em reconhecer a prática de racismo. Em um Judiciário branco3, imerso no racismo institucional e naquilo que antes expliquei como racismo velado, discurso de ódio velado, reconhecer no outro a prática do racismo, no réu, pode ser reconhecer em si mesmo o racismo. E isso é demais. “Racista, eu? Jamais”.

Os crimes de racismo, especialmente o artigo 20 da Lei de Racismo, existem desde 1989. Não há novidade. Novidade seria se o Judiciário reconhecesse a sua ocorrência, já que sempre desclassificou condutas inicialmente denunciadas como Racismo pelo Ministério Público para a antiga Injúria Racial. A novidade legislativa não impede isso. O crime de injúria racial ainda persiste e pode o(a) juiz(íza) reconhecer uma conduta não como racismo, mas como injúria racial. A novidade, agora, é que injúria racial é racismo.

Por fim, não se pode cogitar no Judiciário um papel de proteção de vítimas. Toda a sua organização é voltada para o apagamento da vítima, a menor participação possível. A novidade legislativa de assistência da vítima por advogado ou defensor público é um pequeno – minúsculo – reconhecimento de dignidade da vítima. Mas não esqueçamos, a nossa Justiça jamais conseguirá assegurar a proteção das vítimas, muito menos aquilo que lhes é mais caro: a restauração da sua dignidade. Não é o Sistema Penal o caminho para erradicação do racismo, de evidenciá-lo e indicar o problema em “piadas racistas”, comentários “inoportunos” que, em verdade, são todos racismo. Velado ou não, é racismo. Piada ou não, é racismo.

O reconhecimento efetivo das dores da vítima somente é possível conferindo-lhe voz, inclusive no processo decisório, mas esse desvinculado do tradicional processo decisório do Judiciário. O protagonismo da vítima tanto no relato do sofrimento, quanto na conversa com o agressor, são elementos essenciais de um processo de reconhecimento e busca por diminuição dessa violência.

A vítima deve, pois, possuir local de destaque, mas esse jamais poderá ser concedido pelo Judiciário. O agressor, também, deve ter dimensão do dano causado e a medida responsiva à sua conduta deve(ria) responder à agressão cometida, mas a resposta do Sistema Penal é sempre redutora, genérica e jamais atenta à particularidade do conflito existente entre vítima e vitimizador. A resposta é sempre uma: pena de prisão.

Portanto, é pelo caminho de justiça restaurativa4, transformativa e fora dos muros do Judiciário como identifica Vera Andrade5, que assegure efetivamente a participação de vítimas para que tenham a oportunidade de relatar o seu sofrimento pela sua própria voz, que possam transmitir ao agressor o seu sentimento e possa o agressor também falar, ambos falando e sendo escutados em um processo pautado pela escuta atenta e pelo reconhecimento de ambas as trajetórias, é que poderemos caminhar no sentido de uma compreensão coletiva das mazelas do racismo.

1 Até essa lei o crime de furto (artigo 155 do Código Penal) apresentava pena semelhante ao do antigo crime da antiga injúria racial, 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão para o furto simples e 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para a antiga injúria racial.

2 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e legitimação do controle social sobre os negros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Brado Negro, 2016. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=34475@1

3 Segundos dados do CNJ, 80% dos magistrados brasileiros são brancos (https://www.cnj.jus.br/juiz-brasileiro-e-homem-branco-casado-catolico-e-pai/).

4 GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura para além da punição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2ª ed., 2022

5 BRASIL. Fundação José Arthur Boiteux. Universidade Federal de Santa Catarina. Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2018. 376 p. (Justiça Pesquisa). Relatório analítico propositivo. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/284.

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