PARTE 2 – Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Este é o segundo texto da nossa série sobre as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023. Na primeira parte vimos a principal mudança referente à incorporação do crime de Injúria Racial na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89). Agora, mergulharemos em outras alterações legislativas importantes.

  1. Outras alterações

Para além da alteração mencionada acima, outras devem receber igual destaque porquanto igualmente inovadoras e importantes. Abaixo, analiso apenas as principais alterações de maior impacto.

1.1. Racismo na Internet

O artigo 20 da Lei de Racismo, anteriormente mencionado, prevê como forma qualificada o cometimento de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião quando praticada por intermédio dos “meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza”:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:      (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

A anterior redação do §2º do artigo 20 acima mencionado apenas previa o cometimento da discriminação ou preconceito “por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”. Ou seja, inovou o Legislador ao prever expressamente as redes sociais como ambiente possível de propagação da discriminação ou preconceito racista, apesar da jurisprudência já compreender que o artigo 20 da Lei de Racismo era o tipo penal adequado para punir tais condutas, apesar de, na prática, percebemos uma grande resistência dos Tribunais em condenar réus pela prática desse crime.

Mesmo assim, o reconhecimento Legislativo da prática de atos racistas por intermédio das redes sociais representa um (pequeno) avanço a partir dos mais atuais debates acadêmicos sobre os efeitos nocivos das redes sociais para servir como espaço de proliferação de discursos de ódio, inclusive racistas.

Para quem tiver interesse, o blog do NUDI oferece um grande número de comentários sobre decisões acerca do (mal) uso do artigo 20 na aba referente ao “Observatório de Discursos de Ódio”, clicando em “Jurisprudências Selecionadas e Comentadas”.

1.2. Racismo Esportivo, Religioso, Artístico ou Cultural

Outra novidade legislativa diz respeito ao §2º-A inserido no mesmo artigo 20 acima comentado. A inovação diz respeito a uma nova qualificadora da prática, induzimento ou incitação de práticas discriminatórias ou preconceituosas, agora cometido no contexto esportivo, religioso, artístico ou cultural:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

A inserção dessa qualificadora surge a partir de inúmeras casos envolvendo racismo no esporte, sobretudo em estádios de futebol[1], seja por torcedores ou jogadores.

É prevista uma pena nova de perda de direito político consistente na proibição de frequência por 03 (três) anos no ambiente onde se praticou o delito. Por exemplo, caso seja o crime praticado no contexto esportivo, além da pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, o réu receberá a pena de proibição de frequentar locais esportivos por 03 (três) anos.

Não fica claro na lei a extensão dessa pena, sendo certo que caberá à jurisprudência fixar os parâmetros de proporcionalidade a ser tomado pelo(a) juiz(íza) quando da aplicação e interpretação dessa penalidade, sob pena de configurar pena abusiva que proíba uma pessoa condenada de frequentar todo e qualquer ambiente esportivo.

É claro, no exemplo acima citado, a princípio, fica evidente que um torcedor praticante de ofensas racistas no contexto de uma partida de futebol, caso condenado, ficaria impedido de frequentar estádios e jogos de futebol por 3 (três) anos. Contudo, pela interpretação literal da lei, poder-se-ia estender essa proibição a outras atividades esportivas o que, ao meu sentir, seria desproporcional e aplicaria pena abusiva e ilegal como, por exemplo, proibição de frequentar uma partida de handebol, basquete ou outros esportes diversos do futebol.

Enfim, caberá à jurisprudência fixar os parâmetros legais (STJ) e constitucionais (STF) para aplicação dessa nova penalidade.

1.3. Majorante de Racismo Recreativo

O novo artigo 20-A da Lei 7.716/89, introduzido pela lei agora estudada, trouxe a previsão de aumento da pena de 1/3 até a metade quando qualquer um dos crimes previstos na Lei de Racismo for cometido no contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. A majorante vale para todos os tipos penais previstos na Lei de Racismo.

Talvez a maior polêmica dessa nova Lei, é a previsão expressa de uma majorante para quando o crime for cometido em contexto de diversão e descontração. É a positivação do conceito de racismo recreativo, na inteligência de Adilson Moreira (2019) definido como sendo uma política cultural, um comportamento individual, mas não somente ele, presente em diversas formações culturais, sobretudo nos meios de comunicação. O racismo recreativo é, pois, a manifestação do racismo por meio de um suposto humor, mas na realidade são manifestações e comunicações de estereótipos reprodutores de conteúdos racistas (MOREIRA, 2019, p. 67). São mensagens com intenção cômica, mas têm fundamentos baseados no racismo, valendo-se do humor como meio de propagação de falas, piadas e humores racistas. A conceituação legal do racismo recreativo desvela a impossibilidade de o humor ser interpretado deslocado da mensagem por ele propagada, podendo ser racista. Trata-se, em síntese, de um racismo com intenções humorísticas e de diversão, um racismo de caráter recreativo (MOREIRA, 2019, p. 23).

Em minha visão, essa majorante – que vale para todos os crimes previstos na Lei de Racismo – poderia ser utilizada em conjunto com a qualificadora do artigo 20, o seu §2º-A, anteriormente analisado. Poderia, em um exemplo, pensar em um programa de humor – se é que podemos assim chamar – portanto uma “atividade artística”, na qual o (autointitulado) humorista reforce estereótipos racistas por meio de “piadas”. Entendo que, nesse caso, poderia o agente ser denunciado pela forma qualificada do artigo 20-A, §2º-A e, em eventual condenação, ter a pena majorada de 1/3 até a metade por se tratar de racismo cometido com intuito recreativo, em um contexto de busca por uma diversão, uma piada que agrade a todos, mas apenas serve para propagar ofensas racistas veladas e fantasiadas de humor.   

O Artigo 20-B, agora acrescido, também prevê majorante de 1/3 até a metade para funcionário público (definição do Código Penal) que pratique injúria racial (artigo 2º-A) ou prática, induzimento ou incitação de discriminação ou preconceito (artigo 20).

O Legislador positivou uma definição acadêmica de racismo, muito presente na nossa sociedade, mas ao mesmo tempo naturalizada pelo seu caráter velado. Não é incomum observar a invocação de uma onipotente liberdade de expressão como escusa, uma carta de salvo-conduto, para prática de “piadas” com cunho racista, reprodutoras de uma ordem social desigual e violenta. Além disso, essas “piadas”, o “humor negro” (sic), serve para manutenção de estereótipos racistas ligados a pessoas negras, mas não somente a elas, já que a lei reserva-se a tutelar religiões e procedências nacionais vulnerabilizadas. Pode-se, assim, também pensar em piadas xenofóbicas com intuito de reforçar estereótipos xenófobos para imigrantes ou ainda para um cidadão brasileiro, habitante de uma região do país alvo de preconceito e discriminação, tal como os habitantes do nordeste brasileiro[2]. Pode-se pensar, também, em racismo recreativo no contexto de religiões de matriz africana, alvo de “piadas” sobre macumba e sua associação com “forças malignas” ou “magia negra” (sic). Por fim, também estende-se a norma à discriminação e preconceito contra povos originários, coibindo eventuais tentativas de humor que, por exemplo, tentem associar indígenas com estereótipos negativos tais como preguiça, ou outros mais eugenistas, como a defesa, por meio do humor, de uma suposta inferioridade étnica entre indígenas e os demais brasileiros.

A liberdade de proteção, direito fundamental e humano tão caro às pessoas marginalizadas porquanto assegura minimamente a sua capacidade de expressão e reivindicação de direitos, jamais poderia ser utilizada como escudo para proteção de discursos racistas destinados justamente a ofender essa coletividade de pessoas socialmente vulnerabilizadas. Não é a liberdade de expressão direito apto a assegurar proteção legal de uma tentativa de humor. Isto é, aqueles “humoristas” que, a pretexto de uma suposta liberdade de expressão”, praticam atos racistas fantasiados de “piadas”, o chamado “humor negro” (sic).

O racismo recreativo insere-se no conceito doutrinário e acadêmico de discurso de ódio. Apesar da ausência de tipificação legal expressa, o discurso de ódio enquanto conceito sócio-político e jurídico é amplamente aceito pela literatura acadêmica jurídica e é encontrado em diversas decisões judiciais, apesar de aplicações conceituais esdrúxulas. Apesar disso, por meio de estudos sobre discurso de ódio, é possível perceber que a sua mera manifestação constitui um dano, uma violência, ao destinatário. O discurso de ódio é um dano em si, não sendo necessária a prática de outros atos destinados a ofender a integridade física da vítima[3]

Seja na forma de um discurso de ódio direto, destinado a uma pessoa, ou na forma de um discurso de ódio indireto, aquele destinado a uma coletividade, essa violência por si só provoca danos individuais e coletivos na medida em que reforça estereótipos ofensivos, incita à violência, exclusão, discriminação e preconceito, podendo, inclusive, em formas mais graves, propor a eugenia social, com a total extinção de um grupo específico.

Por isso, não se cogita usar a liberdade de expressão como salvo-conduto para práticas de discurso de ódio, mesmo essas aparecendo por meio de “piadas”, as quais carregam consigo violências veladas. A forma velada do discurso de ódio mostra-se como uma das mais graves porque é de difícil identificação pelo público em geral e pela própria vítima que, não raras vezes, sequer sabe estar na condição de vítima de um discurso de ódio. Essa violência tem por prática o uso de técnicas de persuasão, já que são discursos propagados com certa naturalidade em todos meios sociais, desde a família até a religião, escola, universidade, o que lhe assegura legitimidade e maior facilidade de absorção e internalização, inclusive pelas próprias vítimas[4].

A normalização do racismo, que surge também a partir da sua dimensão recreativa, faz com que condutas racistas possam transitar no discurso social e receber nele aceitação, já que muitas vezes veladas. Comentários sobre o cabelo crespo, tamanho do lábio e do nariz, ou discriminações religiosas como associar religiões de matriz africana como “diabólicas”, são apenas alguns poucos exemplos de condutas facilmente identificadas no cotidiano social, mas raramente nomeadas como racismo ou discurso de ódio racista. Por isso, penetram com maior facilidade no imaginário público, produzindo danos a um número não identificado de vítimas que, por presenciarem e sofrerem durante sua vida inteira essa violência, passam a naturalizá-la e, com isso, o discurso de ódio velado passa a ser aceito, inclusive pelas próprias vítimas, que perdem pouco a pouco a capacidade de discernimento entre o que é uma violência e o que é uma “piadinha”.

Ir contra essa forma velada, desvelando-a e nomeando-a como discurso de ódio racista, desafia esse status social que há muito aceitou essas “piadas” e comentários como naturais e saudáveis. Por isso, institivamente invocam a liberdade de expressão ou “não é racismo, apenas uma piada” para servir de justificação para a conduta racista, portanto criminosa. Ao invés de reconhecer o erro, não raramente os interlocutores dessa violência defendem sua conduta, convictos que a sua “piada” inofensiva é nada mais que um comentário humorístico com intenção de divertir a galera.  Ignoram, contudo, os processos responsáveis pela produção das representações derrogatórias sobre minorias raciais[5].

As representações humorísticas, ou os comentários supostamente inofensivos, são amplamente aceitos e difundidos há décadas, mas isso não significa que não sejam racistas. Não se pode perder de vista que os estereótipos raciais presentes em piadas e brincadeiras são os mesmos que motivam práticas discriminatórias contra minorias raciais em outros contextos. Portanto, o humor racista, uma prática de discurso de ódio velada, é um meio de propagação de hostilidade racial[6].

1.4. Guia interpretativo

Uma inovação da nova Lei nunca prevista em qualquer lei criminal, salvo engano, é a do artigo 20-C. Nesse dispositivo, o legislador trouxe uma espécie de “guia interpretativo” para o juiz que venha a julgar crimes tipificados na Lei de Racismo.

Diz o artigo 20-C:

Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.

A inovação é clara. Se antes havia, ainda que muito remotamente – e bem absurdo – qualquer debate sobre a possibilidade de utilização da Lei de Racismo para criminalizar inexistente preconceito e discriminação contra pessoas brancas, por exemplo, o artigo 20-C enterra de vez essa inútil discussão.

Não há de se cogitar a criminalização de uma coisa que não existe. Portanto, é impossível a criminalização do preconceito ou discriminação contra pessoas brancas em razão da sua condição de pessoas brancas pela sua total inexistência no mundo real – talvez existente no mundo delirante de algumas pessoas. E isso fica evidente pelo artigo 20-C o qual exige do(a) juiz(íza) que considere questões outras não previstas na lei para julgamento dos crimes tipificados na Lei de Racismo.

É evidente que se exige de um(a) juiz(íza) capacidade interpretativa para além do texto legal, considerando a realidade sociopolítica e histórica do Brasil. Entretanto, nunca é demais lembrar o porquê da criação de certas leis. Esse é o caso da Lei do Racismo.

As tipificações criminais existentes na Lei Caó visam punir condutas preconceituosas ou discriminatórias contra minorias socialmente vulnerabilizadas, nela delimitada como grupos socialmente vulnerabilizados pela sua etnia, raça, procedência nacional ou religião. Portanto, no que tange preconceito ou discriminação de raça, evidente que, no Brasil, estar-se a dizer de preconceito ou discriminação contra pessoas negras, por exemplo. Esse grupo, sim, socialmente vulnerabilizado.

O mesmo vale para o preconceito religioso, o qual não comporta qualquer absurdo argumento que defenda a existência de discriminação ou preconceito dirigido contra católicos-cristãos nem contra evangélicos. A previsão instituída pela Lei de Racismo é evidente para criminalização de condutas preconceituosas e discriminatórias contra religiões oprimidas no Brasil, tais como religiões de matriz africana e aquelas praticadas pelos povos originários.

Sendo assim, o artigo 20-C acerta em positivar o óbvio: a interpretação da Lei de Racismo deve sempre considerar as estruturas sociais produtoras de desigualdade e jamais deve o(a) juiz(íza), na análise do caso em concreto, minimizar condutas racistas. Isto é, não pode o(a) juiz(íza) considerar a absolvição com fundamento de que o “comentário do réu, apesar de ofensivo, não representa discriminação ou preconceito”. Não é raro encontrar essa argumentação nas decisões judiciais referentes aos crimes de racismo. Algumas, inclusive, estão comentadas aqui no blog do NUDI[7].

A partir do artigo 20-C, que vejo com bons olhos, não apenas há um alerta aos juízes, como a partir da positivação do óbvio, permite o acesso ao Superior Tribunal de Justiça por meio de Recurso Especial alegando violação do artigo 20-C quando houver, em decisão judicial, minimização de condutas racistas, como uma aplicação aversa do crime de bagatela para condutas racistas.

Claro, eventuais recursos para Tribunais Superiores, notadamente o STJ por se tratar de Lei Federal, encontram diversas barreiras processuais, principalmente da Súmula 07/STJ, impedindo o revolvimento fático-probatório no Recurso Especial. Entretanto, é inegável que a inserção de um dispositivo expresso na Lei dando balizas à interpretação judicial facilita o acesso a instâncias recursais, pensando em eventual processo judicial.

Por fim, entendo que a inserção do artigo 20-C na Lei de Racismo caminha na construção de um Direito Antidiscriminatório, na definição dada por Adilson Moreira, como uma série de normas que pretendem reduzir ou eliminar disparidade significativas entre grupos[8].

São, pois, mecanismos legais que visam efetivar políticas de igualdade e anulação de mecanismos discriminatórios responsáveis por manter grupos sociais em uma permanente desvantagem estrutural em relação e outros grupos sociais. É, portanto, o artigo 20-C, um mecanismo de efetivação de uma igualdade formal e material (artigo 5º da Constituição Federal), mas também um mandato interpretativo para a atividade judicante.

1.5. Assistência à vítima

    O último dispositivo legal analisado é o artigo 20-D recém inserido na Lei de Racismo, o qual prevê a obrigatoriedade de, em todos os atos processuais, cíveis e criminais, acompanhamento de advogado ou defensor público assistindo à vítima dos crimes de racismo.

    A nova Lei retira da vítima o protagonismo da ação penal ao modificar a ação penal da injúria racial de público condicionada à representação para pública incondicionada. Entretanto, em contrassenso, o Legislador determinou a obrigatoriedade de assistência de advogado ou defensor público às vítimas do crime de racismo.

    A intenção do dispositivo legal é evidente: visa a uma proteção da vítima contra a revitimização do processo judicial, evitando o destrato de atores do processo judicial, como Ministério Público, Juiz(íza) ou até mesmo advogado(a) da parte contrária, caminhando no mesmo sentido da Lei Mariana Ferrer de proteção às vítimas e testemunhas (Lei n.º 14.245/21).

    Aliás, ao retirar o direito de representação da vítima no crime de injúria racial, que a rigor é um crime cometido diretamente contra uma pessoa determinada, sendo essa diretamente interessada em eventual processo judicial, o Legislador relenta a vítima a um papel puramente de testemunha, sem qualquer protagonismo no processo judicial.

    Apesar da intenção de proteção da vítima, toda literatura em criminologia crítica, a qual me filio integralmente, há décadas aponta para a falência da legitimidade do Sistema Penal e, dentre seus vários motivos, encontra-se justamente a impossibilidade de concretização da promessa de proteção de vítimas. Por excelência, o direito penal não protege justamente porque chega sempre após o crime estar consumado, ou ao menos tentado. Entretanto, é farta a literatura sobre processos de revitimização durante o curso de processos judiciais, sobretudo referentes ao racismo já que a vítima deve enfrentar, no processo judicial, o racismo institucional, aquele encrustado nas instituições e seus agentes, não estando imunes a ele o Judiciário e o Ministério Público.

    De toda sorte, não se pode negar o (pequeno) avanço introduzido pelo artigo 20-D que pelo menos assegura o acompanhamento do processo por parte da vítima, podendo seu advogado ou defensor público, no processo judicial, defender o seu interesse, seja qual for. Ademais, garante pelo menos à vítima um meio de se atualizar sobre o processo judicial na medida em que, caso não seja parte processual, somente terá notícia da ação quando for chamada a depor em juízo. Entretanto, não se pode deixar de apontar o contrassenso dessa medida com a retirada do direito de representação da vítima no crime de injúria racial.

    É, salvo engano, a única previsão legal de assistência de advogado ou defensor público para vítimas de crime, sendo interessante pensar na expansão dessa medida para outros delitos envolvendo pessoas socialmente vulnerabilizadas, como mulheres na Lei Maria da Penha, no feminicídio ou outro crime movido por ódio contra grupos socialmente vulnerabilizados.

    2. Homofobia e Transfobia

    Vale lembrar que todos os dispositivos previstos na Lei de Racismo devem incluir para além dos elementos “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, os elementos “sexualidade” e “gênero” conforme decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto do Mandado de Injunção 4.777 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26, a conhecida “criminalização da homotransfobia”. Assim, os crimes da Lei de Racismo também valem para práticas homofóbicas e transfóbicas destinadas à população LGBTI+.


    [1]https://www.uol.com.br/esporte/colunas/rodolfo-rodrigues/2022/07/18/racismo-no-futebol-nao-tem-fronteiras-e-parece-estar-muito-longe-do-fim.htm e https://www.brasildefato.com.br/2022/05/21/racistas-estao-cada-vez-mais-a-vontade-diz-diretor-do-observatorio-racial-no-futebol

    [2] Nas jurisprudências comentadas aqui no blog temos algumas referentes à xenofobia contra pessoas habitantes do nordeste.

    [3] PRATES, Francisco de Castilho. Constituir pela fala: notas sobre liberdade de expressão, performatividade e discurso de ódio. Culturas Jurídicas, v. 7, n. 17, pp. 277 – 301, mai./ago. 2020. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45246.

    [4] SILVA, Rosane Leal da; NICHEL, Andressa; MARTINS, Anna Clara Lehmann; BORCHADT, Carlise Kolbe. Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira. Revista Direito GV. São Paulo, n. 7, p. 445-468, jul/dez, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v7n2/a04v7n2.pdf.

    [5] MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen, 2019, p. 66

    [6] MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen, 2019, p. 24

    [7] Caso o leitor queira conferir um exemplo: https://nudiufsm.wordpress.com/2022/01/25/para-juiz-negar-o-holocausto-nao-implica-em-ofensa-ou-inferiorizacao-do-povo-judeu/. Outras decisões analisadas podem ser encontradas neste link: https://nudiufsm.wordpress.com/category/jurisprudencias-selecionadas-e-comentadas/.

    [8] MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020

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