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A presença de crianças e adolescentes na internet: lançamento da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2022

Por Jackeline Prestes Maier

A pesquisa TIC Kids Online Brasil possui como “objetivo gerar evidencias sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil”. A partir da entrevista com crianças e adolescentes – de 9 a 17 anos –, os dados buscam investigar o perfil de uso da internet, às atividades realizadas por crianças e adolescentes, o uso de redes sociais, as habilidades para o uso da internet, a mediação, consumo e seus os riscos e danos. A última pesquisa lançada pelo CETIC.br, em 03 de maio de 2022, revela dados coletados entre junho a outubro de 2022, apoiados em entrevistas de 2.604 crianças e adolescentes e 2.604 pais ou responsáveis.

Sob a perspectiva da conectividade, é importante ressaltar que 96% dos usuários de 9 a 17 anos acessaram a internet todos os dias ou quase todos os dias. Merece atenção o fato de que, de acordo com os dados levantados, 56% das crianças e adolescentes nunca ou quase nunca deixam de usar a internet porque seus pais ou responsáveis controlam ou impedem o uso.

Apesar desses dados extremamente significativos, 31% dos usuários assentiram que sentem que a velocidade da internet fica ruim e 22% que ficam sem internet quando os créditos do celular acabam. Essa questão é presente principalmente quando se trata de crianças em situação de maior vulnerabilidade, sendo essas questões reportadas com maior frequência pelos usuários da classe DE.

Ainda quanto a conectividade, percebe-se que 96% dos usuários de 9 a 17 anos utilizam a internet por meio do dispositivo celular e 43% através do computador. Nota-se também o aumento do uso da televisão para o acesso a internet, com estimativa de 63% e do uso de videogame, com 24%, principalmente entre as classes sociais AB e C.

No que concerne às atividades e habilidades realizadas na internet, é possível verificar que na categoria de multimidia, 87% dos usuários alegaram acessar a internet para ouvir música online e 82% para assistir a vídeos, filmes ou séries. Já no que concerne à educação, 80% pesquisou na internet para fazer trabalhos escolares e 65% pesquisou na internet por curiosidade ou vontade própria. Por fim, no que tange à comunicação, 79% enviou mensagens instantâneas e 32% conversou por chamada de vídeos.

De acordo com a pesquisa, 86% dos usuários de 9 a 17 anos possuem perfil em rede social. Entre as principais redes de acesso estão o TikTok, Instagram e Facebook, que variam de acordo com a faixa etária da criança ou adolescente. O TikTok, por exemplo, possui maior acesso entre crianças de 11 a 12 anos, com 46%. Por outro lado, o Instagram é mais utilizado entre os usuários que possuem entre 15 a 17 anos, com 51%. O Facebook é a rede menos utilizada, com a maior porcentagem de 9%, entre os usuários de 15 a 17 anos.

É perceptível também o crescimento do uso da internet para jogos online. 57% dos usuários afirmaram que já jogaram online, não conectado com outros jogadores e 58% declaram que já jogaram online, conectado com outros jogadores. Esses dados reportam uma importante relação com os estudos realizados Sonia Livingstone e Mariya Stoilova (2021, p. 06), no que diz respeito aos “riscos de contato” e as novas formas de relacionamento de crianças e adolescentes dentro do ambiente digital, que podem levar a contatos com terceiros mal-intencionados e principalmente gerar situações de assédio sexual, perseguição, abuso sexual infantil e vigilância indesejada ou excessiva.

Em uma nova perspectiva, a pesquisa TIC Kids Online de 2022 analisou o uso da internet para saúde e bem-estar. Segundo a coleta de dados, 39% dos usuários reportaram que o uso da internet ajudou a lidar melhor com algum problema de saúde; 34% afirmaram que procuraram na internet informações sobre saúde; 30% já usaram a internet para procurar ajuda quando aconteceu algo ruim ou para conversar sobre as emoções quando se sentiram tristes; e 33% dos usuários reportaram já ter acontecido alguma coisa na internet que não gostaram, os ofenderam ou chatearam.

Aspectos relacionados às habilidades para o uso da internet também chamam atenção. A pesquisa investiga dimensões sobre habilidades operacionais, informacionais, sociais e criativas de crianças e adolescentes. 94% afirmaram saber baixar ou instalar aplicativos; 84% informaram que sabem como proteger o celular ou o tablet, com um PIN, padrão de tela, impressão digital ou reconhecimento facial; 72% declararam saber como ajustar as configurações de privacidade, como por exemplo nas redes sociais; 70% garantiram compreender como denunciar um conteúdo ofensivo relacionado a criança ou a pessoas com quem convive; 57% aduziram conseguir verificar se uma informação encontrada na internet está correta.

Percebe-se, a partir desses dados, um conhecimento maior quanto à funcionalidade da rede do que propriamente uma visão mais crítica sobre o seu uso. Essas porcentagens demonstram que, apesar da facilidade instrumental com as novas tecnologias, crianças e adolescentes, por vezes, não possuem maturidade e experiência suficientes para compreender determinadas questões, riscos e danos existentes no ambiente digital. Esses dados demonstram, mais uma vez, a importância da mediação e orientação familiar nas atividades online desenvolvidas por crianças e adolescente.

Associado ao conhecimento de conteúdos publicitários, 74% das crianças e adolescentes concordam que empresas pagam pessoas para usar seus produtos nos vídeos e conteúdo que publicam na internet. Essas estratégias, no entanto, são reconhecidas com mais facilidades pelos usuários de 15 a 17 anos (82%), sendo menor a sua identificação por crianças de 11 a 12 anos (65%).

A edição de 2022 da pesquisa incluiu em seus dados indicadores sobre a privacidade e as estratégias utilizadas por crianças e adolescente para proteção da sua privacidade na rede. A análise demonstrou que 79% dos usuários de 11 a 17 anos são cuidadosos com as informações pessoais que postam na internet. Na mesma faixa etária, 77% reportaram que só usam aplicativos ou sites que confiam, 76% afirmaram que são cuidadosos com os links de vídeos em que clicam e 73% alegaram que são cuidadosos com os convites de amizade que aceita na internet.

Em menor porcentagem, 63% informaram que só compartilham na internet coisas com amigos próximos, 58% que fornecem o mínimo de informações pessoais possível ao se registrar online e 55% que lê os termos de privacidade dos aplicativos e sites. Por fim, apenas 26% dos usuários informaram que, às vezes, cobrem a câmera do computador ou do celular com um papel ou adesivo para prevenir que sejam vistos.

Analisando os dados apresentados pela pesquisa, é inquestionável a presença de crianças e adolescentes no ambiente digital. No entanto, para além desse aspecto, já ressaltando nas pesquisas anteriores, os dados apresentados em 2022, em sua inovação, revelam as principais atividades realizadas por crianças e adolescentes, bem como suas habilidades diante das ferramentas digitais. Esse panorama representa um importante avanço para o enfrentamento dos riscos existentes no ambiente digital e para alertar os corresponsáveis pela proteção integral (família, Estado e sociedade) dos desafios existentes para proteção de crianças e adolescentes no ambiente virtual.

Os dados aqui mencionados trazem um resumo da íntegra da pesquisa mencionada, que pode ser acessada neste link. O lançamento dos dados, realizado no canal do YouTube do NIC.br, também pode ser contemplado neste link.

REFERÊNCIAS:

LIVINGSTONE, Sonia; STOILOVA, Mariya. The 4Cs: Classifying Online Risk to Children. Hamburg: Leibniz-Institut für Medienforschung Hans-Bredow-Institut (HBI); CO:RE – Children Online: Research and Evidence, 2021. Disponível em: https://www.ssoar.info/ssoar/handle/document/71817. Acesso em: 24 jan. 2023.

NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DOCENTRO REGIONAL DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO [CETIC.BR]. TICs Kids Online Brasil 2022: Principais resultados. São Paulo, 2022. Disponível em: https://cetic.br/media/analises/tic_kids_online_brasil_2022_principais_resultados.pdf. Acesso em: 03 mai. 2023.  

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A necessidade de proteção e defesa dos direitos das consumidoras em razão de práticas comerciais abusivas

Por Eduarda Marion

A Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON), através do Departamento e Defesa do Consumidor (DPDC), em parceria com a Coordenação Geral de Estudos e Monitoramento de Mercado (CGEMM), em 07/03/2023, na véspera do Dia da Mulher, apresentou posicionamento por meio da Nota Técnica nº 6/2023/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, a respeito das práticas comerciais abusivas e a necessidade de proteção e defesa dos direitos das consumidoras.

A discussão de gênero se faz necessária, essencialmente quando se está diante de uma sociedade que ainda traz sinais da naturalização das desigualdades impostas historicamente, e que, de fato, devem ser desacreditadas. De acordo com o que fora apresentado na Nota Técnica, infelizmente as relações de consumo corroboram com a vulnerabilidade da mulher por meio de práticas abusivas diversas, sendo responsabilidade do Estado promover a proteção e defesa dessas, como o fez ao redigir a nota que se comenta.

Sem dúvidas, ações que debatem a respeito do tratamento da mulher no mercado de consumo e o dever de respeitar o seu gênero é fundamental. Entretanto, em que pese algumas notas sejam dirigidas, é lamentável que em pleno século XXI práticas abusivas contra as mulheres sejam realizadas desenfreadamente. A exemplo disso, tem–se a distinção de preços entre homens e mulheres, uma afronta direta ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao princípio da isonomia. Nesse ínterim, ressalta-se a prática que se faz cada vez mais comum, sobre o acesso facilitado às mulheres em eventos noturnos, com disponibilização abundante de bebidas alcoólicas, que em um primeiro momento se parece uma opção atraente, afinal, o ser humano gosta de receber descontos dentro do mercado capitalista. Contudo, quando paramos para refletir, surge o questionamento: quem é o verdadeiro produto em situações como a relatada? As bebidas, meias entradas, e até mesmo entradas free disponibilizadas as mulheres, ou o gênero que é usado como isca para atrair mais consumidores homens?

Como bem lembrado pela Nota Técnica em discussão, a Constituição Federal, no art. 3º, IV, combinado com o art. 5º, II, tem por premissa a proibição à discriminação e a igualdade entre homens e mulheres. No entanto, tais previsões legais são severamente violadas quando presenciamos situações em que a mulher é colocada como objeto de campanhas publicitárias machistas, atitudes que não devem ser toleradas em uma sociedade que luta pela igualdade.

Logo, diante da realidade em que práticas abusivas contra mulheres são comuns, se faz necessário a aplicação das diretrizes de proteção e defesa da consumidora apresentadas pela Nota Técnica. Vejamos:

I) Igualdade de gênero e não-discriminação: A proteção da mulher consumidora deve ser baseada nos princípios da igualdade de gênero e da não-discriminação, garantindo o respeito à dignidade da mulher e a eliminação de todas as formas de discriminação e violência contra a mulher no contexto do consumo.

II) Proteção de direitos das mulheres consumidoras: A proteção dos direitos das mulheres consumidoras deve ser assegurada por meio da garantia da proteção contra práticas comerciais desleais e contra a discriminação de gênero nas condições de acesso aos produtos e serviços.

III) Educação e conscientização: A educação e a conscientização sobre direitos das mulheres consumidoras devem ser promovidas, visando a formação da sociedade para eliminação de estereótipos e preconceitos de gênero no contexto do consumo.

IV) Comunicação não sexista: Os fornecedores de produtos e serviços devem adotar uma comunicação não sexista, evitando a objetificação, sexualização da mulher em campanhas publicitárias e a utilização de estereótipos de gênero não deve ser admitida, bem como a promoção de produtos ou serviços que reforcem esta condição.

V) Preços justos e igualdade de acesso: Os fornecedores de produtos e serviços devem garantir preços justos e a igualdade de acesso às mulheres. Não devem ser aplicados preços diferenciados sem justificativa clara e objetiva.

VI) Garantia de segurança e qualidade: Os fornecedores de produtos e serviços devem garantir medidas de controle de qualidade e segurança desde a fabricação até a comercialização e as informações sobre os riscos associados ao uso devem ser claramente comunicadas às consumidoras, levando em consideração, de modo especial, a mulher consumidora gestante.

VII) Participação das mulheres na tomada de decisão: As mulheres devem ser representadas e ter voz ativa em órgãos e instâncias de proteção aos direitos provenientes das relações de consumo, de forma a garantir que as políticas de proteção sejam sensíveis às necessidades e aos seus interesses.

VIII) Cooperação e parceria: A proteção da mulher consumidora deve ser promovida em cooperação entre os membros do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, órgãos de proteção, as organizações de mulheres e de defesa dos direitos humanos, além dos fornecedores de produtos e serviços para estabelecer a harmonia das relações de consumo.

IX) Regulamentação e fiscalização: As práticas de proteção da mulher consumidora devem ser baseadas em uma legislação clara e efetiva, que assegure a igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a produtos e serviços de consumo.

X) Promoção de ações afirmativas: Os fornecedores de produtos e serviços e os órgãos de proteção devem promover ações afirmativas para fomentar igualdade de gênero nas relações de consumo, com incentivo à inclusão de mulheres.

Conclui-se, portanto, que a aplicação das diretrizes supramencionadas se fazem necessárias para assegurar a aplicação dos direitos das mulheres consumidoras. No entanto, é relevante que se pense métodos de melhor publicizar tais informações, para que cheguem de forma célere até os produtores, e assim passem a ser aplicadas no mercado de consumo.

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TECNOLOGÍA Y HUMANISMO, BUSCANDO EL EQUILIBRIO

Por Romina Florencia Cabrera

En las primeras semanas del año 2023, nos hemos visto sorprendidos por una serie de fenómenos, sobre todo tecnológicos: los avances de la Inteligencia artificial a través de Chat Gpt; la competencia de Google, Bard (como respuesta a Chat Gpt); el metaverso; los objetos voladores no identificados y otras cosas más.

Lo importante de aquí, es rescatar el papel tan útil y beneficioso de los avances científicos, para mejorar la vida de la humanidad.

Por ejemplo, la Inteligencia artificial podrá resolver problemas complejos, imitando la inteligencia humana, no suplantándola, ya que las emociones y la creatividad única de un artista o un debate intelectual jamás podrán dejar esa cuota de humanismo, si queremos vivir en una sociedad empática y superadora, para fomentar valores.

También podrá contribuir a la medicina, como el avance de la genética, para desterrar enfermedades terminales y hereditarias, con bases de datos y plataformas aún más desarrolladas.

En cuanto al metaverso, es una excelente oportunidad para mejorar negocios digitales, a través del marketing, realidad aumentada, superar barreras territoriales, y ofrecerle al usuario mejorar experiencias a través de sus sentidos en este nuevo universo virtual.

También podrá utilizarse para simular operaciones médicas, vuelos, estrategias militares, mejorar la calidad educativa, congresos virtuales y reuniones de negocios, hasta audiencias virtuales (que ya se están realizando, la primera recientemente en Colombia). También para incorporar los métodos alternativos de resolución de conflictos, como la mediación.

Lo importante es mantener siempre el sentido ético de la Tecnología, sobre todo en la Inteligencia Artificial y en el metaverso, donde los derechos y obligaciones deberán hacerse presentes, igual que en la realidad.

También las personas deberán conocer el límite entre entorno real y digital, como en la actual realidad aumentada, para conocer realmente cuales son los límites y las posibilidades de actuación.

La interdisciplina deberá estar siempre presente para abordar estos fenómenos tan complejos, a través de filósofos, psicólogos, sociólogos, abogados, informáticos, politólogos, artistas, lingüistas, médicos y todas las cooperaciones naciones e internacionales entre profesionales, que sean necesarias.

También teniendo en cuenta las demandas sociales, sobre todo en las necesidades de usuarios, en cuanto a consumo y gustos personales, para diseñar y posicionar una marca, especialmente teniendo en cuanta la privacidad y la intimidad en la era digital. Y sobre todo, tener especial cuidado en la ciberseguridad y la ciberdefensa, ya que los delitos informáticos aumentarán en esta nueva modalidad (ya han crecido a raíz de la pandemia, con la informatización de los servicios privados y gubernamentales). 

Los derechos humanos, basados en la dignidad y valor de la persona humana, según la Convención de Viena de los Tratados, también deberán estar presentes en el Metaverso, porque los ciudadanos merecen respeto en cualquier medio en el cual desarrollen sus actividades y personalidad, sobre todo en cuanto a la identidad digital.

La tecnología es maravillosa, pero siempre utilizada con equilibrio, respetando los valores, y sobre todo, las tradiciones, los pilares de la civilización.

Utilicemos la tecnología para la paz, en lugar del sentido apocalíptico, y sobre todo, para construir ciudadanía, más democracia, inclusión, y sobre todo, para que se respeten los Derechos Humanos de todos y todas, que han retrocedido en pandemia, creando más miseria en el mundo.

Brindemos un futuro mejor a las próximas generaciones, respetando el planeta tierra y el desarrollo sostenible, que también sufrirá las consecuencias del cambio climático. Aprovechemos las ventajas que ofecen estas maravillosas herramientas.

Vamos a abrazar los adelantos científicos, incorporándolos a nuestra vida; y no olvidemos las tradiciones: tratemos de adaptarlas al Nuevo Mundo.

EVENTO – 16ª edição da International Conference on Theory and Practice of Electronic Governance (ICEGOV 2023)

O Núcleo de Direito Informacional divulga a chamada para apresentação de artigos e propostas de workshops para 16ª edição da International Conference on Theory and Practice of Electronic Governance (ICEGOV 2023).

Para mais informações sobre a conferência, por favor, acesse este link.

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Novas tecnologias, sustentabilidade e direitos sociais: estudos multidisciplinares

O NUDI divulga a obra “Novas Tecnologias, Sustentabilidade e Direitos Sociais”, organizado pelos professores Ângela Dias Mendes, Francieli Iung Izolani e Marcelo Dias Jaques.

O livro conta com um artigo escrito pelos Nudianos Luiz Henrique Silveira dos Santos, Isadora Balestrin Guterres e pela Prof. Dra. Rosane Leal, coordenadora do NUDI.

O trabalho possui como título “MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS NA SOCIEDADE EM REDE: Fundação SOS Amazônia e as estratégias na busca por uma consciência ambiental sustentável”.

Toda a receita líquida resultante da comercialização do livro será revertida para a causa da educação infantil no Brasil.

O livro pode ser adquirido neste link.

Confira também nosso post no instagram.

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Direitos da criança e do adolescente: promovendo a interface entre as tecnologias e o direito infantoadolescente

O Núcleo de Direito Informacional convida a todos e todas para conhecer a obra “Direitos da criança e do adolescente: promovendo a interface entre as tecnologias e o direito infantoadolescente”, a ser publicada através da editora D’Plácido.

A Prof.ª Dr.ª Rosane Leal da Silva, coordenadora do NUDI, em conjunto com a nudiana Elisa Viana Dias Chaves, contribuíram com o artigo intitulado “A exposição de crianças e adolescentes aos conteúdos impróprios e ilícitos nas plataformas digitais: da promessa de proteção integral às falhas no dever de cuidado”, o qual passou a compor o quinto capítulo do livro.

Confira a o sumário e a apresentação da obra clicando neste link e garanta sua cópia adquirindo-a em pré-venda através deste link.

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PARTE 3 – Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Chegamos na última parte da nossa série de três textos sobre as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023. Na última parte vimos outras alterações promovidas para além da incorporação do crime de Injúria Racial na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89). Agora, tecerei comentários finais sobre as alterações legislativas estudadas até aqui.

  1. Comentário finais

Não pretendo me alongar mais, já que muito o fiz ao longo desse texto. Apenas gostaria de pontuar alguns aspectos finais.

Primeiro, por me identificar com a criminologia crítica, não vejo com bons olhos produções legislativas expansivas do Poder Punitivo, notadamente com a majoração de penas criminais ou criação de tipos penais novos. Entretanto, não se pode perder de vista que a lei ora analisada representa um marco no reconhecimento pelo Estado do racismo como violência real.

Filiou-me, também, a uma perspectiva abolicionista penal, visando a abolição da pena de prisão. Entretanto, não existe prática abolicionista penal no capitalismo. Isto é, a extinção da pena – no seu sentido mais complexo e completo e não apenas a de prisão – não é possível dentro do contexto capitalista, de modo que o abolicionismo sabe e sempre defendeu, e me filio integralmente, que o Sistema Penal nada mais faz do que cumprir um papel dentro do sistema capitalista. Para abolição da pena, portanto, é necessário primeiro a abolição dessas funções exigidas do Sistema Penal.

Dito isso, a previsão de novos tipos penais e a majoração das penas base, como no caso ora analisado, não demanda uma análise reducionista de “se criou um crime então é ruim”. Percebemos com essa nova lei, um marco na interpretação do racismo pelo Estado brasileiro, uma tentativa de redimensionamento da proporcionalidade de penas no direito penal.

A existência do direito penal, pelo menos por ora, é certa. É certo, também, que há desproporcionalidade nas penas previstas pelo direito penal brasileiro. Por exemplo, o crime te Golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal), pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão, muito conhecido nos últimos dias, cujo bem jurídico tutelado é nada mais nada menos do que a própria Democracia, possui pena menor do que o crime de Tráfico de Drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06), cuja pena é de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos de reclusão.

Essa desproporcionalidade na previsão de penas para crimes com bens jurídicos distintos, mas um com clara superioridade de importância em relação ao outro, não é novidade. Agora, o que faz o Legislador criminal na Lei n.º 14.532/2023, para além de uma visão reducionista de mera “expansão do direito penal”, é corrigir parte dessa desproporcionalidade1.

Apesar do reconhecimento se dar pela via da criminalização, não se pode tratar a criação de tipos penais ou majoração de penas referentes a delitos cometidos contra grupos socialmente vulnerabilizados e esquecidos pelo Estado da mesma forma que interpretamos a expansão do Direito Penal para outros crimes, como por exemplo delitos patrimoniais e tráfico de drogas, responsáveis pelo grande encarceramento de pretos e pobres nas prisões brasileiras.

É evidente que se trata de um reconhecimento da existência do racismo e da sua gravidade para a comunidade negra. A lei inova e muito ao trazer um “guia interpretativo”, bem como positiva o racismo recreativo, conceito desenvolvido pela literatura especializada (como o citado Adilson Moreira no conceito de racismo recreativo). Isso representa um avanço, traz protagonismo de autores e autoras negros e negras e de suas produções intelectuais.

Mas é necessário cobrar. Não pode a única medida do Estado ao enfrentamento do racismo vir na forma de leis penais.

A despeito do reconhecimento legislativo, o racismo institucional apresenta-se no Judiciário e no Ministério Público, servindo de barreira ao reconhecimento da prática de racismo no cotidiano processual. A pesquisa de Thula Pires2 é sempre atual para demonstrar a dificuldade – quase que proposital – do Judiciário em reconhecer a prática de racismo. Em um Judiciário branco3, imerso no racismo institucional e naquilo que antes expliquei como racismo velado, discurso de ódio velado, reconhecer no outro a prática do racismo, no réu, pode ser reconhecer em si mesmo o racismo. E isso é demais. “Racista, eu? Jamais”.

Os crimes de racismo, especialmente o artigo 20 da Lei de Racismo, existem desde 1989. Não há novidade. Novidade seria se o Judiciário reconhecesse a sua ocorrência, já que sempre desclassificou condutas inicialmente denunciadas como Racismo pelo Ministério Público para a antiga Injúria Racial. A novidade legislativa não impede isso. O crime de injúria racial ainda persiste e pode o(a) juiz(íza) reconhecer uma conduta não como racismo, mas como injúria racial. A novidade, agora, é que injúria racial é racismo.

Por fim, não se pode cogitar no Judiciário um papel de proteção de vítimas. Toda a sua organização é voltada para o apagamento da vítima, a menor participação possível. A novidade legislativa de assistência da vítima por advogado ou defensor público é um pequeno – minúsculo – reconhecimento de dignidade da vítima. Mas não esqueçamos, a nossa Justiça jamais conseguirá assegurar a proteção das vítimas, muito menos aquilo que lhes é mais caro: a restauração da sua dignidade. Não é o Sistema Penal o caminho para erradicação do racismo, de evidenciá-lo e indicar o problema em “piadas racistas”, comentários “inoportunos” que, em verdade, são todos racismo. Velado ou não, é racismo. Piada ou não, é racismo.

O reconhecimento efetivo das dores da vítima somente é possível conferindo-lhe voz, inclusive no processo decisório, mas esse desvinculado do tradicional processo decisório do Judiciário. O protagonismo da vítima tanto no relato do sofrimento, quanto na conversa com o agressor, são elementos essenciais de um processo de reconhecimento e busca por diminuição dessa violência.

A vítima deve, pois, possuir local de destaque, mas esse jamais poderá ser concedido pelo Judiciário. O agressor, também, deve ter dimensão do dano causado e a medida responsiva à sua conduta deve(ria) responder à agressão cometida, mas a resposta do Sistema Penal é sempre redutora, genérica e jamais atenta à particularidade do conflito existente entre vítima e vitimizador. A resposta é sempre uma: pena de prisão.

Portanto, é pelo caminho de justiça restaurativa4, transformativa e fora dos muros do Judiciário como identifica Vera Andrade5, que assegure efetivamente a participação de vítimas para que tenham a oportunidade de relatar o seu sofrimento pela sua própria voz, que possam transmitir ao agressor o seu sentimento e possa o agressor também falar, ambos falando e sendo escutados em um processo pautado pela escuta atenta e pelo reconhecimento de ambas as trajetórias, é que poderemos caminhar no sentido de uma compreensão coletiva das mazelas do racismo.

1 Até essa lei o crime de furto (artigo 155 do Código Penal) apresentava pena semelhante ao do antigo crime da antiga injúria racial, 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão para o furto simples e 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para a antiga injúria racial.

2 PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e legitimação do controle social sobre os negros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Brado Negro, 2016. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=34475@1

3 Segundos dados do CNJ, 80% dos magistrados brasileiros são brancos (https://www.cnj.jus.br/juiz-brasileiro-e-homem-branco-casado-catolico-e-pai/).

4 GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da pena e justiça restaurativa: a censura para além da punição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2ª ed., 2022

5 BRASIL. Fundação José Arthur Boiteux. Universidade Federal de Santa Catarina. Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2018. 376 p. (Justiça Pesquisa). Relatório analítico propositivo. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/284.

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PARTE 2 – Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Este é o segundo texto da nossa série sobre as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023. Na primeira parte vimos a principal mudança referente à incorporação do crime de Injúria Racial na Lei de Racismo (Lei n.º 7.716/89). Agora, mergulharemos em outras alterações legislativas importantes.

  1. Outras alterações

Para além da alteração mencionada acima, outras devem receber igual destaque porquanto igualmente inovadoras e importantes. Abaixo, analiso apenas as principais alterações de maior impacto.

1.1. Racismo na Internet

O artigo 20 da Lei de Racismo, anteriormente mencionado, prevê como forma qualificada o cometimento de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião quando praticada por intermédio dos “meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza”:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:      (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

A anterior redação do §2º do artigo 20 acima mencionado apenas previa o cometimento da discriminação ou preconceito “por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”. Ou seja, inovou o Legislador ao prever expressamente as redes sociais como ambiente possível de propagação da discriminação ou preconceito racista, apesar da jurisprudência já compreender que o artigo 20 da Lei de Racismo era o tipo penal adequado para punir tais condutas, apesar de, na prática, percebemos uma grande resistência dos Tribunais em condenar réus pela prática desse crime.

Mesmo assim, o reconhecimento Legislativo da prática de atos racistas por intermédio das redes sociais representa um (pequeno) avanço a partir dos mais atuais debates acadêmicos sobre os efeitos nocivos das redes sociais para servir como espaço de proliferação de discursos de ódio, inclusive racistas.

Para quem tiver interesse, o blog do NUDI oferece um grande número de comentários sobre decisões acerca do (mal) uso do artigo 20 na aba referente ao “Observatório de Discursos de Ódio”, clicando em “Jurisprudências Selecionadas e Comentadas”.

1.2. Racismo Esportivo, Religioso, Artístico ou Cultural

Outra novidade legislativa diz respeito ao §2º-A inserido no mesmo artigo 20 acima comentado. A inovação diz respeito a uma nova qualificadora da prática, induzimento ou incitação de práticas discriminatórias ou preconceituosas, agora cometido no contexto esportivo, religioso, artístico ou cultural:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

§ 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

A inserção dessa qualificadora surge a partir de inúmeras casos envolvendo racismo no esporte, sobretudo em estádios de futebol[1], seja por torcedores ou jogadores.

É prevista uma pena nova de perda de direito político consistente na proibição de frequência por 03 (três) anos no ambiente onde se praticou o delito. Por exemplo, caso seja o crime praticado no contexto esportivo, além da pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, o réu receberá a pena de proibição de frequentar locais esportivos por 03 (três) anos.

Não fica claro na lei a extensão dessa pena, sendo certo que caberá à jurisprudência fixar os parâmetros de proporcionalidade a ser tomado pelo(a) juiz(íza) quando da aplicação e interpretação dessa penalidade, sob pena de configurar pena abusiva que proíba uma pessoa condenada de frequentar todo e qualquer ambiente esportivo.

É claro, no exemplo acima citado, a princípio, fica evidente que um torcedor praticante de ofensas racistas no contexto de uma partida de futebol, caso condenado, ficaria impedido de frequentar estádios e jogos de futebol por 3 (três) anos. Contudo, pela interpretação literal da lei, poder-se-ia estender essa proibição a outras atividades esportivas o que, ao meu sentir, seria desproporcional e aplicaria pena abusiva e ilegal como, por exemplo, proibição de frequentar uma partida de handebol, basquete ou outros esportes diversos do futebol.

Enfim, caberá à jurisprudência fixar os parâmetros legais (STJ) e constitucionais (STF) para aplicação dessa nova penalidade.

1.3. Majorante de Racismo Recreativo

O novo artigo 20-A da Lei 7.716/89, introduzido pela lei agora estudada, trouxe a previsão de aumento da pena de 1/3 até a metade quando qualquer um dos crimes previstos na Lei de Racismo for cometido no contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação. A majorante vale para todos os tipos penais previstos na Lei de Racismo.

Talvez a maior polêmica dessa nova Lei, é a previsão expressa de uma majorante para quando o crime for cometido em contexto de diversão e descontração. É a positivação do conceito de racismo recreativo, na inteligência de Adilson Moreira (2019) definido como sendo uma política cultural, um comportamento individual, mas não somente ele, presente em diversas formações culturais, sobretudo nos meios de comunicação. O racismo recreativo é, pois, a manifestação do racismo por meio de um suposto humor, mas na realidade são manifestações e comunicações de estereótipos reprodutores de conteúdos racistas (MOREIRA, 2019, p. 67). São mensagens com intenção cômica, mas têm fundamentos baseados no racismo, valendo-se do humor como meio de propagação de falas, piadas e humores racistas. A conceituação legal do racismo recreativo desvela a impossibilidade de o humor ser interpretado deslocado da mensagem por ele propagada, podendo ser racista. Trata-se, em síntese, de um racismo com intenções humorísticas e de diversão, um racismo de caráter recreativo (MOREIRA, 2019, p. 23).

Em minha visão, essa majorante – que vale para todos os crimes previstos na Lei de Racismo – poderia ser utilizada em conjunto com a qualificadora do artigo 20, o seu §2º-A, anteriormente analisado. Poderia, em um exemplo, pensar em um programa de humor – se é que podemos assim chamar – portanto uma “atividade artística”, na qual o (autointitulado) humorista reforce estereótipos racistas por meio de “piadas”. Entendo que, nesse caso, poderia o agente ser denunciado pela forma qualificada do artigo 20-A, §2º-A e, em eventual condenação, ter a pena majorada de 1/3 até a metade por se tratar de racismo cometido com intuito recreativo, em um contexto de busca por uma diversão, uma piada que agrade a todos, mas apenas serve para propagar ofensas racistas veladas e fantasiadas de humor.   

O Artigo 20-B, agora acrescido, também prevê majorante de 1/3 até a metade para funcionário público (definição do Código Penal) que pratique injúria racial (artigo 2º-A) ou prática, induzimento ou incitação de discriminação ou preconceito (artigo 20).

O Legislador positivou uma definição acadêmica de racismo, muito presente na nossa sociedade, mas ao mesmo tempo naturalizada pelo seu caráter velado. Não é incomum observar a invocação de uma onipotente liberdade de expressão como escusa, uma carta de salvo-conduto, para prática de “piadas” com cunho racista, reprodutoras de uma ordem social desigual e violenta. Além disso, essas “piadas”, o “humor negro” (sic), serve para manutenção de estereótipos racistas ligados a pessoas negras, mas não somente a elas, já que a lei reserva-se a tutelar religiões e procedências nacionais vulnerabilizadas. Pode-se, assim, também pensar em piadas xenofóbicas com intuito de reforçar estereótipos xenófobos para imigrantes ou ainda para um cidadão brasileiro, habitante de uma região do país alvo de preconceito e discriminação, tal como os habitantes do nordeste brasileiro[2]. Pode-se pensar, também, em racismo recreativo no contexto de religiões de matriz africana, alvo de “piadas” sobre macumba e sua associação com “forças malignas” ou “magia negra” (sic). Por fim, também estende-se a norma à discriminação e preconceito contra povos originários, coibindo eventuais tentativas de humor que, por exemplo, tentem associar indígenas com estereótipos negativos tais como preguiça, ou outros mais eugenistas, como a defesa, por meio do humor, de uma suposta inferioridade étnica entre indígenas e os demais brasileiros.

A liberdade de proteção, direito fundamental e humano tão caro às pessoas marginalizadas porquanto assegura minimamente a sua capacidade de expressão e reivindicação de direitos, jamais poderia ser utilizada como escudo para proteção de discursos racistas destinados justamente a ofender essa coletividade de pessoas socialmente vulnerabilizadas. Não é a liberdade de expressão direito apto a assegurar proteção legal de uma tentativa de humor. Isto é, aqueles “humoristas” que, a pretexto de uma suposta liberdade de expressão”, praticam atos racistas fantasiados de “piadas”, o chamado “humor negro” (sic).

O racismo recreativo insere-se no conceito doutrinário e acadêmico de discurso de ódio. Apesar da ausência de tipificação legal expressa, o discurso de ódio enquanto conceito sócio-político e jurídico é amplamente aceito pela literatura acadêmica jurídica e é encontrado em diversas decisões judiciais, apesar de aplicações conceituais esdrúxulas. Apesar disso, por meio de estudos sobre discurso de ódio, é possível perceber que a sua mera manifestação constitui um dano, uma violência, ao destinatário. O discurso de ódio é um dano em si, não sendo necessária a prática de outros atos destinados a ofender a integridade física da vítima[3]

Seja na forma de um discurso de ódio direto, destinado a uma pessoa, ou na forma de um discurso de ódio indireto, aquele destinado a uma coletividade, essa violência por si só provoca danos individuais e coletivos na medida em que reforça estereótipos ofensivos, incita à violência, exclusão, discriminação e preconceito, podendo, inclusive, em formas mais graves, propor a eugenia social, com a total extinção de um grupo específico.

Por isso, não se cogita usar a liberdade de expressão como salvo-conduto para práticas de discurso de ódio, mesmo essas aparecendo por meio de “piadas”, as quais carregam consigo violências veladas. A forma velada do discurso de ódio mostra-se como uma das mais graves porque é de difícil identificação pelo público em geral e pela própria vítima que, não raras vezes, sequer sabe estar na condição de vítima de um discurso de ódio. Essa violência tem por prática o uso de técnicas de persuasão, já que são discursos propagados com certa naturalidade em todos meios sociais, desde a família até a religião, escola, universidade, o que lhe assegura legitimidade e maior facilidade de absorção e internalização, inclusive pelas próprias vítimas[4].

A normalização do racismo, que surge também a partir da sua dimensão recreativa, faz com que condutas racistas possam transitar no discurso social e receber nele aceitação, já que muitas vezes veladas. Comentários sobre o cabelo crespo, tamanho do lábio e do nariz, ou discriminações religiosas como associar religiões de matriz africana como “diabólicas”, são apenas alguns poucos exemplos de condutas facilmente identificadas no cotidiano social, mas raramente nomeadas como racismo ou discurso de ódio racista. Por isso, penetram com maior facilidade no imaginário público, produzindo danos a um número não identificado de vítimas que, por presenciarem e sofrerem durante sua vida inteira essa violência, passam a naturalizá-la e, com isso, o discurso de ódio velado passa a ser aceito, inclusive pelas próprias vítimas, que perdem pouco a pouco a capacidade de discernimento entre o que é uma violência e o que é uma “piadinha”.

Ir contra essa forma velada, desvelando-a e nomeando-a como discurso de ódio racista, desafia esse status social que há muito aceitou essas “piadas” e comentários como naturais e saudáveis. Por isso, institivamente invocam a liberdade de expressão ou “não é racismo, apenas uma piada” para servir de justificação para a conduta racista, portanto criminosa. Ao invés de reconhecer o erro, não raramente os interlocutores dessa violência defendem sua conduta, convictos que a sua “piada” inofensiva é nada mais que um comentário humorístico com intenção de divertir a galera.  Ignoram, contudo, os processos responsáveis pela produção das representações derrogatórias sobre minorias raciais[5].

As representações humorísticas, ou os comentários supostamente inofensivos, são amplamente aceitos e difundidos há décadas, mas isso não significa que não sejam racistas. Não se pode perder de vista que os estereótipos raciais presentes em piadas e brincadeiras são os mesmos que motivam práticas discriminatórias contra minorias raciais em outros contextos. Portanto, o humor racista, uma prática de discurso de ódio velada, é um meio de propagação de hostilidade racial[6].

1.4. Guia interpretativo

Uma inovação da nova Lei nunca prevista em qualquer lei criminal, salvo engano, é a do artigo 20-C. Nesse dispositivo, o legislador trouxe uma espécie de “guia interpretativo” para o juiz que venha a julgar crimes tipificados na Lei de Racismo.

Diz o artigo 20-C:

Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.

A inovação é clara. Se antes havia, ainda que muito remotamente – e bem absurdo – qualquer debate sobre a possibilidade de utilização da Lei de Racismo para criminalizar inexistente preconceito e discriminação contra pessoas brancas, por exemplo, o artigo 20-C enterra de vez essa inútil discussão.

Não há de se cogitar a criminalização de uma coisa que não existe. Portanto, é impossível a criminalização do preconceito ou discriminação contra pessoas brancas em razão da sua condição de pessoas brancas pela sua total inexistência no mundo real – talvez existente no mundo delirante de algumas pessoas. E isso fica evidente pelo artigo 20-C o qual exige do(a) juiz(íza) que considere questões outras não previstas na lei para julgamento dos crimes tipificados na Lei de Racismo.

É evidente que se exige de um(a) juiz(íza) capacidade interpretativa para além do texto legal, considerando a realidade sociopolítica e histórica do Brasil. Entretanto, nunca é demais lembrar o porquê da criação de certas leis. Esse é o caso da Lei do Racismo.

As tipificações criminais existentes na Lei Caó visam punir condutas preconceituosas ou discriminatórias contra minorias socialmente vulnerabilizadas, nela delimitada como grupos socialmente vulnerabilizados pela sua etnia, raça, procedência nacional ou religião. Portanto, no que tange preconceito ou discriminação de raça, evidente que, no Brasil, estar-se a dizer de preconceito ou discriminação contra pessoas negras, por exemplo. Esse grupo, sim, socialmente vulnerabilizado.

O mesmo vale para o preconceito religioso, o qual não comporta qualquer absurdo argumento que defenda a existência de discriminação ou preconceito dirigido contra católicos-cristãos nem contra evangélicos. A previsão instituída pela Lei de Racismo é evidente para criminalização de condutas preconceituosas e discriminatórias contra religiões oprimidas no Brasil, tais como religiões de matriz africana e aquelas praticadas pelos povos originários.

Sendo assim, o artigo 20-C acerta em positivar o óbvio: a interpretação da Lei de Racismo deve sempre considerar as estruturas sociais produtoras de desigualdade e jamais deve o(a) juiz(íza), na análise do caso em concreto, minimizar condutas racistas. Isto é, não pode o(a) juiz(íza) considerar a absolvição com fundamento de que o “comentário do réu, apesar de ofensivo, não representa discriminação ou preconceito”. Não é raro encontrar essa argumentação nas decisões judiciais referentes aos crimes de racismo. Algumas, inclusive, estão comentadas aqui no blog do NUDI[7].

A partir do artigo 20-C, que vejo com bons olhos, não apenas há um alerta aos juízes, como a partir da positivação do óbvio, permite o acesso ao Superior Tribunal de Justiça por meio de Recurso Especial alegando violação do artigo 20-C quando houver, em decisão judicial, minimização de condutas racistas, como uma aplicação aversa do crime de bagatela para condutas racistas.

Claro, eventuais recursos para Tribunais Superiores, notadamente o STJ por se tratar de Lei Federal, encontram diversas barreiras processuais, principalmente da Súmula 07/STJ, impedindo o revolvimento fático-probatório no Recurso Especial. Entretanto, é inegável que a inserção de um dispositivo expresso na Lei dando balizas à interpretação judicial facilita o acesso a instâncias recursais, pensando em eventual processo judicial.

Por fim, entendo que a inserção do artigo 20-C na Lei de Racismo caminha na construção de um Direito Antidiscriminatório, na definição dada por Adilson Moreira, como uma série de normas que pretendem reduzir ou eliminar disparidade significativas entre grupos[8].

São, pois, mecanismos legais que visam efetivar políticas de igualdade e anulação de mecanismos discriminatórios responsáveis por manter grupos sociais em uma permanente desvantagem estrutural em relação e outros grupos sociais. É, portanto, o artigo 20-C, um mecanismo de efetivação de uma igualdade formal e material (artigo 5º da Constituição Federal), mas também um mandato interpretativo para a atividade judicante.

1.5. Assistência à vítima

    O último dispositivo legal analisado é o artigo 20-D recém inserido na Lei de Racismo, o qual prevê a obrigatoriedade de, em todos os atos processuais, cíveis e criminais, acompanhamento de advogado ou defensor público assistindo à vítima dos crimes de racismo.

    A nova Lei retira da vítima o protagonismo da ação penal ao modificar a ação penal da injúria racial de público condicionada à representação para pública incondicionada. Entretanto, em contrassenso, o Legislador determinou a obrigatoriedade de assistência de advogado ou defensor público às vítimas do crime de racismo.

    A intenção do dispositivo legal é evidente: visa a uma proteção da vítima contra a revitimização do processo judicial, evitando o destrato de atores do processo judicial, como Ministério Público, Juiz(íza) ou até mesmo advogado(a) da parte contrária, caminhando no mesmo sentido da Lei Mariana Ferrer de proteção às vítimas e testemunhas (Lei n.º 14.245/21).

    Aliás, ao retirar o direito de representação da vítima no crime de injúria racial, que a rigor é um crime cometido diretamente contra uma pessoa determinada, sendo essa diretamente interessada em eventual processo judicial, o Legislador relenta a vítima a um papel puramente de testemunha, sem qualquer protagonismo no processo judicial.

    Apesar da intenção de proteção da vítima, toda literatura em criminologia crítica, a qual me filio integralmente, há décadas aponta para a falência da legitimidade do Sistema Penal e, dentre seus vários motivos, encontra-se justamente a impossibilidade de concretização da promessa de proteção de vítimas. Por excelência, o direito penal não protege justamente porque chega sempre após o crime estar consumado, ou ao menos tentado. Entretanto, é farta a literatura sobre processos de revitimização durante o curso de processos judiciais, sobretudo referentes ao racismo já que a vítima deve enfrentar, no processo judicial, o racismo institucional, aquele encrustado nas instituições e seus agentes, não estando imunes a ele o Judiciário e o Ministério Público.

    De toda sorte, não se pode negar o (pequeno) avanço introduzido pelo artigo 20-D que pelo menos assegura o acompanhamento do processo por parte da vítima, podendo seu advogado ou defensor público, no processo judicial, defender o seu interesse, seja qual for. Ademais, garante pelo menos à vítima um meio de se atualizar sobre o processo judicial na medida em que, caso não seja parte processual, somente terá notícia da ação quando for chamada a depor em juízo. Entretanto, não se pode deixar de apontar o contrassenso dessa medida com a retirada do direito de representação da vítima no crime de injúria racial.

    É, salvo engano, a única previsão legal de assistência de advogado ou defensor público para vítimas de crime, sendo interessante pensar na expansão dessa medida para outros delitos envolvendo pessoas socialmente vulnerabilizadas, como mulheres na Lei Maria da Penha, no feminicídio ou outro crime movido por ódio contra grupos socialmente vulnerabilizados.

    2. Homofobia e Transfobia

    Vale lembrar que todos os dispositivos previstos na Lei de Racismo devem incluir para além dos elementos “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, os elementos “sexualidade” e “gênero” conforme decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto do Mandado de Injunção 4.777 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26, a conhecida “criminalização da homotransfobia”. Assim, os crimes da Lei de Racismo também valem para práticas homofóbicas e transfóbicas destinadas à população LGBTI+.


    [1]https://www.uol.com.br/esporte/colunas/rodolfo-rodrigues/2022/07/18/racismo-no-futebol-nao-tem-fronteiras-e-parece-estar-muito-longe-do-fim.htm e https://www.brasildefato.com.br/2022/05/21/racistas-estao-cada-vez-mais-a-vontade-diz-diretor-do-observatorio-racial-no-futebol

    [2] Nas jurisprudências comentadas aqui no blog temos algumas referentes à xenofobia contra pessoas habitantes do nordeste.

    [3] PRATES, Francisco de Castilho. Constituir pela fala: notas sobre liberdade de expressão, performatividade e discurso de ódio. Culturas Jurídicas, v. 7, n. 17, pp. 277 – 301, mai./ago. 2020. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/45246.

    [4] SILVA, Rosane Leal da; NICHEL, Andressa; MARTINS, Anna Clara Lehmann; BORCHADT, Carlise Kolbe. Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira. Revista Direito GV. São Paulo, n. 7, p. 445-468, jul/dez, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v7n2/a04v7n2.pdf.

    [5] MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen, 2019, p. 66

    [6] MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen, 2019, p. 24

    [7] Caso o leitor queira conferir um exemplo: https://nudiufsm.wordpress.com/2022/01/25/para-juiz-negar-o-holocausto-nao-implica-em-ofensa-ou-inferiorizacao-do-povo-judeu/. Outras decisões analisadas podem ser encontradas neste link: https://nudiufsm.wordpress.com/category/jurisprudencias-selecionadas-e-comentadas/.

    [8] MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020

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    Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

    Por Pablo Domingues de Mello

    Este é o primeiro texto de uma série de três nos quais nos estudaremos as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023, que transformou o crime de Injúria Racial em crime de Racismo, incorporando-a na Lei n.º 7.716/89.

    Em 11 de janeiro de 2023, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de posse da Ministra de Estado da Igualdade Racial, Anielle Franco, e da Ministra de Estado dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, sancionou a Lei n.º 14.532/2023 que, dentre algumas mudanças, prevê a equiparação do crime de injúria racial ao crime de racismo.

    1. Como era antes?

    Em 1988, quando promulgada a Constituição Federal, seu artigo 5º, inciso XLII, determinava que lei posterior criminalizaria o racismo, conferindo a esse delito a inafiançabilidade e imprescritibilidade e a imposição da pena de reclusão. Em 1989, apenas um ano após a promulgação da Constituição Federal, foi sancionada a Lei n.º 7.716/89, conhecida Lei Caó, criminalizando os crimes decorrentes do preconceito de raça e cor.

    Em 1997, a Lei n.º 9.459/97 alterou o artigo 1º da Lei Caó que passou a criminalizar os crimes resultantes não apenas de preconceito de raça e cor, mas de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Alargou-se, portanto, o conceito de racismo para abarcar preconceitos não só resultantes de discriminação por raça e cor, mas etnia , religião (preconceito religioso) e procedência nacional (xenofobia). Essa é a redação que se mantém até os dias atuai e não sofreu alteração com a nova lei ora em análise.

    Na Lei do Racismo encontravam-se previstos 12 (doze) crimes, e todos levam em consideração o preconceito e a discriminação a partir de elementos como raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há, por exemplo, crime a quem “Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador” (artigo 5º da Lei n.º 7.716/89). Para caracterização desse delito, é imprescindível que o acesso a estabelecimento comercial, por exemplo, seja impedido por meio de preconceito ou discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

    Em contrapartida, o Código Penal previa em seu artigo 140, §3º, o chamado crime de Injúria Racial. Era (e ainda é, com algumas alterações) a forma qualificada do crime de injúria, isto é, previa pena distinta quando o crime de injúria (ofensa à dignidade de alguém) era praticado por meio da utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, procedência nacional, religião, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

    A antiga pena do crime de injúria racial era de 1 (um) ano a 3 (três) anos de reclusão mais multa.

    A diferença que residia entre o crime de racismo e o de injúria racial, para além das penas, era que aquele consistia em ofensa a um coletivo de pessoas, apesar da possibilidade do seu direcionamento a uma pessoa determinada (como no exemplo de impedir acesso a estabelecimento comercial), enquanto que a injúria racial consistiria no crime de injúria, portanto ofensa a dignidade e decoro de uma pessoa, utilizando-se de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

    Na realidade, dos 12 (doze) crimes previstos na Lei de Racismo, antes da nova alteração legal, apenas o crime previsto no artigo 20 se confundia em parte com a injúria racial:

    Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

    Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

    Esse dispositivo legal se assemelha com o da antiga injúria racial na medida em que uma conduta poderia ser interpretada como um ou outro delito. Para solucionar a lacuna legislativa, a construção da jurisprudência e da doutrina, simplificadamente, caminhou em diferenciar as duas condutas, racismo e injúria racial, a partir da vítima atingida e do dolo do agente, isto é, da intenção dele ao praticar a discriminação ou preconceito motivado em elementos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

    Por exemplo, em sendo uma vítima determinada e estar presente o dolo de ofender a dignidade ou decoro dela, configurar-se-ia, em tese, o crime de injúria racial, já que esse delito visa proteger a dignidade e autoestima da vítima, abalada pelo uso discriminatório ou preconceituoso de elementos ligados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Em sendo o preconceito ou discriminação destinados a uma coletividade a partir de elementos relativos raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e o dolo do agente seja de ofender a toda uma coletividade indeterminada de indivíduos ligados entre si pelos elementos acima descritos, estar-se-ia configurado, em tese, o crime de racismo do artigo 20.

    Entretanto, duas diferenças cruciais residiam entre ambos os delitos: o crime de racismo é imprescritível e inafiançável e a ação penal é pública incondicionada, isto é, o Ministério Público detém a titularidade para oferecer a denúncia enquanto o crime de injúria racial não era nem imprescritível e nem inafiançável, bem como a ação era pública condicionada à representação, isto é, o Ministério Público ainda era o titular da ação penal, mas dependia da anuência da vítima que poderia escolher por representar, ou não, criminalmente contra o agressor.

    Agora, tudo restou unificado como veremos.

    1. Como fica?

    A Lei n.º 14.532/2023 não aboliu o crime de injúria racial, apenas o deslocou do Código Penal para a Lei n.º 7.716/89. A alteração legislativa inseriu o artigo 2º-A na Lei 7.716/89 e modificou a redação da Injúria qualificada (antiga injúria racial) do artigo 140, §3º, do Código Penal.

    As novas redações ficaram as seguintes:

    Injúria Racial (artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89):

    Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Injúria Qualificada (antiga injúria racial – artigo 140, §3º, do Código Penal):

    Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

    § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:        (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.       (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

    Percebe-se, portanto, que houve apenas o deslocamento da injúria racial para dentro da Lei do Racismo e a atual redação da injúria qualificada mantém os elementos “religião, condição de pessoa idosa ou com deficiência”, sendo essa a atual forma qualificada da injúria, agora não mais denominada injúria racial, sendo essa aquela constante no artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89.

    A injúria racial mantém os elementos “raça, cor, etnia e procedência nacional”, estando excluída, portanto, da injúria racial, os elementos “religião, condição de pessoa idosa e pessoa com deficiência”.

    A pena da injúria qualificada manteve-se a mesma.

    A pena da injúria racial foi de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa. Fica, portanto, afastada a possibilidade do réu por injúria racial fazer uso do benefício da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95) em razão da pena mínima superar o patamar de 01 (um) ano exigido pela lei.

    A ação penal por crime de Injúria Racial passa a ser pública incondicionada, portanto de titularidade do Ministério Público sem que haja necessidade de representação da vítima para continuidade da ação.

    A Injúria Racial passa, agora, a ser inafiançável e imprescritível, apesar de já ter havido em 2021 decisão do Supremo Tribunal Federal, no HC 154.248 julgado pelo Plenário, que estendida os efeitos da imprescritibilidade ao antigo crime de injúria racial.

    A alteração legislativa da Lei n.º 14.532/2023 sedimenta o debate antigo da diferença entre injúria racial e racismo na medida em que, atualmente, a injúria racial é uma forma de racismo, ou seja, um dos crimes previstos pela Lei de Racismo.

    De plano podemos verificar haver uma incongruência no texto legal. O artigo 1º da Lei de Racismo estipula que essa violência é cometida quando há “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A antiga redação do crime de injúria racial previa todas essas formas de preconceito e discriminação e adicionava a “condição de pessoa idosa ou com deficiência”.

    Houve, como dito, o deslocamento do crime de injúria racial para a Lei de Racismo, mantendo, ainda, a forma qualificada da Injúria no Código Penal. Entretanto, na transposição da injúria racial para a Lei de Racismo, o Legislador manteve o “preconceito ou discriminação de religião” como forma qualificada do crime de injúria (no Código Penal) e não o levou para a Lei de Racismo, apesar da própria lei de racismo prever que o racismo se manifesta no preconceito ou discriminação em razão da religião.

    A redação atual da injúria qualificada inclui a prática de injuriar alguém com o uso de elementos referentes a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência”. Isto é, parece que o Legislador “esqueceu” que a injúria praticada com o uso de elementos de preconceito ou discriminação religiosa, na verdade, constitui crime de racismo, sobretudo porque o próprio artigo 1º da Lei de Racismo assim dispõe:

    Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.       (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

    Me parece, portanto, que errou o legislador ao não deslocar a injúria qualificada por preconceito ou discriminação religiosa para dentro da, agora, nova Injúria Racial na Lei de Racismo. O que parece, a partir da leitura do artigo 1º da Lei n.º 7.716/89, é que o Legislador realmente esqueceu do preconceito ou discriminação religiosa.

    É evidente que essa forma de preconceito ou discriminação é voltada para religiões marginalizadas e criminalizadas no Brasil, tais como aquelas de matriz africana e aquelas praticadas pelos povos originários. Inclusive, é essa a melhor interpretação a ser dada justamente pela advertência muito bem incluída no artigo 20-C da Lei de Racismo, que será em breve melhor comentado.

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    CÂMARA DOS DEPUTADOS APROVA PROJETO DE LEI QUE TRANSFORMA PEDOFILIA EM CRIME HEDIONDO

    Por Pablo Domingues de Mello

    O plenário da Câmara dos Deputados, no dia 09 de novembro de 2022, aprovou o Projeto de Lei n.º 1.776-C/2015 [1], de autoria dos Deputados Federais Paulo Freire (PR/SP) e Clarissa Garotinho (UNIÃO/RJ) que torna crime hediondo crimes relacionados à prática de pedofilia, como prática de ato sexual na presença de criança ou adolescente, corrupção de menores de 14 anos de idade e o registro e divulgação de cena de estupro de vulnerável. O projeto, ainda, aumenta as penas de uma série de crimes ligados à pedofilia

    Por lei, a pedofilia em si não é considerada crime. Contudo, práticas de pedofilia, isto é, relações sexuais com crianças e adolescentes, são criminalizadas, como o estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal) que é a prática de conjunção carnal ou ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. Também se insere nesse contexto o crime de prática de pedofilia pela internet (artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente) que consiste em vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.

    Das condutas caracterizadas como pedofilia, a Lei dos Crimes Hediondos inclui hoje apenas o estupro de vulnerável e o favorecimento da prostituição de criança, adolescente ou vulnerável.

    A Lei 8.072/1990 estabelece os crimes hediondos e, como consequência, os condenados por esses crimes têm uma série de restrições, como a obrigatoriedade de o regime inicial de cumprimento de pena ser o regime fechado, são insuscetíveis de graça, anistia, indulto e fiança.

    O texto aprovado modifica, ainda, a Lei de Execução Penal para prever que, nos casos de saída temporária de presos, aqueles condenados por crimes de pedofilia sejam proibidos de se aproximar de escolas de ensino infantil, fundamental ou médio, e de frequentar parques e praças que contenham parques infantis e outros locais que sejam frequentados predominantemente por menores de 18 anos. Também estabelece monitoração eletrônica para condenados por pedofilia. 

    Atualmente, para progressão de regime na execução penal é exigido o cumprimento de 40% da pena se o condenado for primário, 50% caso o condenado seja primário e o crime tenha como resultado morte ou posição de comando da organização criminosa e 60% para condenados por crime hediondo reincidentes em crime hediondo (artigo 112 da Lei de Execução Penal). Ademais, caso seja o condenado por crime hediondo reincidente em crime comum (não hediondo), deverá cumprir 40% da pena para progressão de regime (ARE 1.327.963, Plenário STF, rel. Min. Gilmar Mendes).

    Com o projeto aprovado, o condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado contra criança ou adolescente terá que cumprir 50% da pena para progressão de regime e 70% se for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional ou reincidente em crime hediondo ou equiparado contra criança ou adolescente.

    O projeto aprovado segue, agora, para votação no Senado Federal. Caso aprovado, passará para promulgação do Presidente da República.


    [1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1301482