(FINALMENTE) INJÚRIA LGBTI+FÓBICA É RECONHECIDA COMO CRIME DE RACISMO: E AGORA?

Por Pablo Domingues

Em 2019 o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do que ficou conhecido como a criminalização da homotransfobia[1]. Em resumo, a Suprema Corte reconheceu o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional em editar lei que criminalizasse a LGBTI+fobia e, por consequência, visando o preenchimento dessa lacuna, determinou que fosse aplicada a Lei n. 7.716/89 (Lei do Crime Racial) para essas condutas até a edição de alguma lei específica sobre a matéria.

A consequência prática do julgamento foi a extensão da Lei do Crime Racial, e os tipos penais nela previstos, às condutas LGBTI+fóbicas, bem como atribuiu a elas as características que a própria Constituição Federal prevê para os crimes de racismo, como a imprescritibilidade e a inafiançabilidade (artigo 5º, XLII, da Constituição Federal[2])

A LGBTI+fobia passou a ser compreendida como uma forma de racismo. Inclusive, essa informação encontra-se expressa na tese de julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, relatada pelo Min. Celso de Mello:

III - O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito (grifos meus)

À época do julgamento, a Lei do Crimes Racial previa uma série de condutas que se enquadravam no conceito amplo de “crime de racismo”, como por exemplo o artigo 20 que dispunha ser crime

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Entretanto, nessa mesma época, o Código Penal previa um crime denominado de “injúria racial”, uma qualificadora do crime de injúria:

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
§ 3 Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:             (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena – reclusão de um a três anos e multa.   

Dada a coexistência de dois crimes, o de injúria racial e aqueles previstos na Lei do Crime Racial, era necessário diferenciá-los. Conceitualmente, injúria racial era definida como uma ofensa à honra da vítima, valendo-se de elementos relacionados a sua raça, cor, etnia, religião ou origem[3]. Já os crimes de racismo eram diferenciados da injúria racial a partir de quem era a vítima. Nos crimes de racismo a “vítima” seria toda uma coletividade não individualizada, utilizando a violência praticada de elementos ligados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional desse grupo atingido. O exemplo tradicionalmente dado diferenciava, por exemplo, uma ofensa racista proferida diretamente contra uma pessoa (seria injúria racial) e outra ofensa destinada a toda comunidade negra (seria crime de racismo).

Os exemplos dados, em verdade, apenas tentavam suprir uma lacuna deixada pela criação dessa diferença pela legislação brasileira. É claro que qualquer injúria racial também é racismo, seja do ponto de vista sociológico, seja pela própria leitura da lei. Afinal, não havia qualquer norma, seja na Lei do Crime Racial, seja no Código Penal, que expressamente diferenciasse esses tipos penais. Cabia, portanto, aos Tribunais e à literatura especializada diferenciá-los.

Em 2023 o cenário mudou com a promulgação da Lei n. 14.532/2023, que retirou a injúria racial do Código Penal e a transferiu para a Lei de Crimes Raciais. Sobre essa nova lei, já fiz um texto aqui no blog comentando-a[4].

Dessa forma, a partir de 11 de janeiro de 2023, data da promulgação dessa lei, descabe diferenciar os crimes de injúria racial e de racismo, porque, ao fim ao cabo, injúria racial é racismo. A nova lei apenas positivou, corretamente, algo que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal há muito já afirmavam, sobretudo a partir do julgamento do Caso Ellwanger pelo STF (HC n. 82.424). Inclusive, antes mesmo dessa nova lei, o STF equiparou o racismo e a injúria racial no julgamento do HC n. 154.248 em 2022[5], conforme trecho do voto do relator Min. Edson Fachin:

2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

Entretanto, à época do julgamento da criminalização da homotransfobia, pecou o STF ao ter deixado de consignar expressamente que a homotransfobia não seria apenas crime de racismo, mas também de injúria racial, já que ainda imperava a antiga diferenciação entre esses dois delitos. Assim, entre o julgamento da criminalização da homotransfobia em 2019, e a nova lei de 2023, condutas que pudessem se enquadrar como “injúria homotransfóbica” careciam de previsão legal, a despeito do entendimento do STF e do STJ já apontar diversas vezes para uma igualdade entre esses tipos penais.

Essa lacuna, agora, não mais existe, afinal, não se faz mais justificável a diferenciação entre injúria racial (artigo 140, §3º, do Código Penal) e racismo (delitos da Lei n. 7.716/89), a partir da Lei n. 14.532/23. Contudo, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), autora de uma das ações de 2019, opôs embargos de declaração contra o acórdão no Mandado de Injunção n. 4733, noticiando ao Supremo que a lacuna deixada no julgamento permitia que membros do Ministério Público e autoridades policiais arquivassem inquéritos e demais investigações sobre “injúria homotransfóbica” por ausência de previsão expressa no julgamento do STF.

Para a ABGLT, a decisão do Supremo estaria sendo interpretada de forma equivocada, no sentido de que a ofensa contra grupos LGBTI+ configura racismo, mas a ofensa à honra de pessoas pertencentes a esses grupos vulnerabilizados não configuraria o crime de injúria racial. Essa lacuna deixada prejudicaria a aplicabilidade prática da decisão do STF, sobretudo porque não se ignora a existência da violência estrutural LGBTI+fóbica, presente na sociedade e, também, por óbvio, nas instituições do Estado, que contribui para que os agentes estatais reproduzam preconceitos, inclusive no momento de tomada de decisão sobre a imputação criminal a algum fato noticiado.

 De acordo com a associação, isso retirava, em grande parte, a aplicabilidade prática da decisão do STF, e, por isso, requereu que fosse sanada essa omissão por meio dos embargos de declaração. Não surpreende o que foi noticiado pela ABGLT, sobretudo porque a própria Lei do Crime Racial ainda é mal aplicada para questões envolvendo racismo contra o povo negro. Inclusive, a própria evolução jurisprudencial do STJ e do STF em reconhecer o antigo crime de injúria racial como crime de racismo, derivou, também, da denúncia feita há muito pela academia de que o Sistema de Justiça Criminal reluta em reconhecer condutas racistas como racismo e destinava a elas o rótulo da injúria racial, por ser um crime penalmente “menos grave”[6].

As leis antirracismo brasileiras exigem, para condenar alguém por racismo, que o acusado tenha agido com intenção racista. Entretanto, os Tribunais brasileiros demonstram falta de seriedade para lidar com esse tipo de crime e evitam impor as pesadas sentenças estabelecidas pela Constituição Federal aos culpados por crime de racismo:

Juízes e promotores, assim como demais membros da sociedade brasileira, veem supostos incidentes de racismo como inócuos e não estão dispostos a colocar os infratores atrás das grades por um tipo de comportamento que é comum na sociedade brasileira. (TELLES, 2003, p. 264)[7]

Assim, como afirma Thula Pires[8] “deixar de aplicar normas de teor antirracista, esvaziar as medidas de promoção da igualdade racial e fortalecer a imagem do negro como delinquente são exemplos mais que evidentes de uso oficial do Direito contra a população preta e parda”.

O recurso de embargos de declaração da ABGLT foi então julgado pelo Supremo que concluiu que houve, de fato, omissão no julgamento de 2019. Em seu voto, o relator Min. Edson Fachin destacou que “a tese que sustenta os presentes embargos, qual seja, o reconhecimento do crime de injúria racial como espécie do gênero racismo, já foi acolhida pela recente jurisprudência desta Suprema Corte”. De fato, desde o julgamento do HC n. 154.248 em 2022, o Supremo Tribunal Federal encerrou a discussão jurisprudencial sobre a diferença entre injúria racial e racismo, ao equiparar ambos os tipos penais para todos os efeitos.

Encerrou o ministro relator indicando que “tendo em vista que a injúria racial constitui uma espécie do crime de racismo, e que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual configura racismo por raça, a prática da homotransfobia pode configurar crime de injúria racial”.

O julgamento se deu no plenário do STF, com somente um único voto contrário ao do relator. O novo Min. Cristiano Zanin divergiu, porque entendeu que a matéria do recurso ampliaria os pedidos da ABGLT, que na inicial do mandado de injunção não requereu a equiparação expressa da homotransfobia com a antiga injúria racial.

Desse julgamento gostaria de destacar dois pontos, que se convergem e tem no voto do ministro Zanin o seu melhor exemplo.

A motivação do recurso da ABGLT se deu, como a entidade explicou, pela má interpretação dada pelo Sistema de Justiça Criminal ao julgamento do Supremo de 2019. Ora, em 2019 o Supremo afirmou categoricamente que LGBTI+fobia é espécie de racismo, compreendendo racismo não apenas como um conjunto de preconceitos e discriminações destinados às pessoas negras, mas também sendo a identidade de gênero e a sexualidade enquadradas como raça. A despeito das várias e corretas críticas à decisão do Supremo, sobretudo a partir da conclusão de que sexualidade e identidade de gênero são espécies de racismo por raça, fato é que a decisão do STF foi bem clara.

Na realidade, a má interpretação da decisão, noticiada pela ABGLT, não se trata de um erro cognitivo interpretativo, mas de uma conduta deliberada e intencional de agentes do Sistema Penal que se recusam a aplicar a decisão do Supremo, valendo-se de esquemas interpretativos delirantes e deliberadamente míopes. Se o termo chave em ambos os crimes em questão era o vocábulo “raça”, e o Supremo disse “homotransfobia é racismo de raça”, qual a dúvida? Por que não aplicar a decisão do STF para crimes de injúria racial? Perguntas retóricas, porque sabemos a razão da recusa dos agentes estatais em reconhecer violências decorrentes de toda estrutura social, aqui estrutura LGBTI+fóbica, que nesses agentes se (re)produz cotidianamente.

Afinal, raça pode ser um conceito jurídico distinto caso estejamos analisando a Lei de Crimes Raciais ou o Código Penal? Alguns representantes estatais, pelo visto, acreditam que sim. Por isso, respeitosamente, digo que a decisão do Min. Zanin preferiu destinar toda atenção para aspectos processuais, essencial é claro, porque processo é forma e garantia, mas ignorou a base da interpretação de toda e qualquer norma jurídica: a simples lógica.

De qualquer modo, o Supremo precisou dizer que o fogo queima, a luz brilha e a água é molhada. No período entre 2019 e 2023, condutas homotransfóbicas podem, sim, serem tipificadas ou como racismo, ou como o antigo delito de injúria racial, a depender da conduta praticada pelo réu, a partir daquela diferenciação tradicionalmente feita. Para fins práticos, muda a pena do crime e só.

E a anterioridade penal? Sabemos que é constitucionalmente vedada a retroatividade de nova lei (ou nova interpretação), caso essa seja prejudicial ao réu[9]. Acredito que não há qualquer vedação para que essa nova orientação do Supremo atinja o período entre 2019 e 2023. Não se trata de retroatividade de interpretação prejudicial, mas um julgamento de um recurso declaratório, cujo efeito é, obviamente, declarar. Ademais, não há qualquer efeito infringente concedido aos embargos de declaração, o que, processualmente falando, indica que o julgamento de 2019 e esse de 2023 tiveram a mesma conclusão jurídica. Não houve modificação do entendimento do Supremo a partir do julgamento dos embargos de declaração, de modo que a conclusão dos embargos de declaração pode ser conferida a casos concretos como se tivesse sido tomada em 2019.  

Desse histórico, percebemos que o óbvio também precisa ser dito, para evitar supostas interpretações que, intencionalmente, valem-se de uma hermenêutica desprovida de lógica interpretativa e inebriada de sintomas que denunciam a permanência da LGBTI+fobia estrutural e institucional no Sistema de Justiça Criminal brasileiro.


[1] Julgamento da ADO 26, Relator: CELSO DE MELLO, e MI 4733, Relator: EDSON FACHIN, ambos julgados pelo Tribunal Pleno em 13/06/2019

[2]Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

[3] O antigo §3º do artigo 140 do Código Penal previa, também, a injúria etária (em razão da condição de pessoa idosa) e injúria capacitista (em razão de ser pessoa com deficiência).

[4]https://nudiufsm.wordpress.com/2023/01/27/parte-3-comentarios-sobre-a-lei-n-o-14-532-2023-que-equipara-injuria-racial-a-racismo-e-nao-nao-ha-criminalizacao-de-humoristas-por-piadas-ofensivas/

[5] Ementa: HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL (ART. 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL). ESPÉCIE DO GÊNERO RACISMO. IMPRESCRITIBILIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Depreende-se das normas do texto constitucional, de compromissos internacionais e de julgados do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento objetivo do racismo estrutural como dado da realidade brasileira ainda a ser superado por meio da soma de esforços do Poder Público e de todo o conjunto da sociedade. 2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo. 4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível. 5. Ordem de habeas corpus denegada.

(HC 154248, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-036  DIVULG 22-02-2022  PUBLIC 23-02-2022)

[6] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

[7] TELLES, Edward. Racismo à Brasileira: Uma Nova Perspectiva Sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Ford, p. 264, 2003.

[8] PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e legitimação do controle social sobre os negros. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/Brado Negro, p. 281, 2016. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=34475@1. Acesso em: 03 set. 2023.

[9] Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

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