O armazenamento de dados pessoais sensíveis através da biometria facial em autistas e o princípio da não-maleficência/beneficência

Por Noemi de Freitas Santos1

A notícia a ser analisada e comentada é sobre a utilização da biometria facial por um plano de saúde, envolvendo a coleta de dados em crianças com deficiência dentro do transtorno do espectro do autismo (TEA). O fato ocorreu na Cidade de Guarulhos, interior de São Paulo, e o procedimento acabou causando desregulação nos referidos usuários.

Uma breve introdução sobre o caso em análise:

Uma criança beneficiária do plano de saúde da Unimed Guarulhos e com transtorno do espectro do autismo foi surpreendida com a informação de que, para acessar às terapias de que necessitava precisaria passar pelo sistema de biometria facial, que segundo nota de esclarecimento da empresa, foi implantado em 20162, mas durante a pandemia de COVID-19, houve a necessidade de melhoria desta tecnologia, evoluindo para a sua implantação no ano de 2021.

A menor de idade estava acompanhada pela mãe, que é a beneficiária titular do plano de saúde em questão, no momento da abordagem para a solicitação de coleta de seus dados pessoais pelo sistema biométrico. O vídeo com imagens da criança, no qual se tentava realizar a biometria facial foi disponibilizado pela genitora da criança autista na internet, por meio de sua rede social3.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrou em vigor em agosto de 2021, classifica como dados pessoais sensíveis todo o dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural, disposto no art. 5º, inciso II da LGPD4.

Uma das definições mais aceitas do termo Inteligência Artificial (IA) é a de que se trata de sistemas que tentam pensar e agir como humanos e/ou sistemas que tentam pensar e agir racionalmente, sendo que algumas das principais áreas em que a IA vem sendo utilizada atualmente são: biometria, fiscalização de trânsito, jogos, diagnóstico médico, controle autônomo, robótica e pesquisa na internet5.

A biometria facial consiste no reconhecimento facial, impressão digital e de voz, que serve para a identificação de pessoas, animais e coisas em um determinado ambiente e/ou para ingresso em determinada plataforma ou até mesmo acesso de moradores em uma portaria de um condomínio residencial6.

Apesar do sistema biométrico ser estendido aos demais usuários do plano de saúde, deve-se atentar ao fato de que a doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê o melhor interesse da criança e do adolescente, sobretudo por tratar-se de infante com algum tipo de deficiência e, portanto, com vulnerabilidade agravada7.

Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem buscado aprimorar códigos de conduta e diretrizes não vinculantes através do uso da soft law para orientar governos e mecanismos internacionais sobre o uso da inteligência artificial na área da saúde, com o surgimento do relatório8 da OMS sobre Ética e Governança da Inteligência Artificial para a Saúde.

O documento elaborado no ano de 2021 identifica os desafios e riscos éticos com o uso da inteligência artificial na saúde, destacando seis princípios de consenso para garantir que a IA funcione em benefício público de todos os países, dentre os quais pode-se destacar o princípio da não-maleficência.

Através do princípio da não-maleficência ou beneficência, o emprego da inteligência artificial deve monitorar a performance dos algoritmos com a finalidade de causar menos impactos em pacientes ou grupos de usuários de saúde, visando aprimorar a segurança na tentativa de proteger os indivíduos da estigmatização e discriminação9 (nota de rodapé 8 – p. 26).

Com isso, resta evidenciado que o uso da IA através do sistema biométrico em pacientes com transtorno do espectro do autismo (TEA) deve atender à doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes disposto no Estatuto, bem como ao princípio da não-maleficência/beneficência previsto na orientação da OMS sobre Ética e Governança da Inteligência Artificial para a Saúde.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 30 set. 2022.

BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm Acesso em: 30 set. 2022.

FRANCO; Cristiano Roberto. Inteligência Artificial. Indaial: Uniasselvi, 2017, p. 9. Disponível em: https://www.uniasselvi.com.br/extranet/layout/request/trilha/materiais/livro/livro.php?codigo=22869 Acesso em: 30 set. 2022.

NOTA de esclarecimento. Unimed Guarulhos, 2022. Disponível em: https://www.unimedguarulhos.coop.br/Pages/noticiasinterna.aspx?nID=188&nList=GlobalNews Acesso em: 30 set. 2022.

WORLD Health Organization. Ethics and governance of artificial intelligence for health: WHO guidance. Geneva (CH): WHO; 2021, p. 26. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240029200 Acesso em: 03/10/2022.

1 Advogada com formação acadêmica pela Universidade Federal de Santa Maria e pós-graduanda em Direito Tributário e Previdenciário Militar. Membra da Comissão Especial da Saúde da OAB – Seccional Rio Grande do Sul. Membra Titular do Conselho Gestor do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Região Centro (CEREST-Centro). Membra da Comissão Especial da Seguridade Social da OAB Subseção Santa Maria/RS. Presidente da Comissão Especial de Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB Subseção Santa Maria/RS. Membra do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Santa Maria – Segmento Mulheres. Membra do Comitê da Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil – Núcleo de Santa Maria. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Núcleo de Direito Informacional (UFSM).

2 NOTA de esclarecimento. Unimed Guarulhos, 2022. Disponível em: https://www.unimedguarulhos.coop.br/Pages/noticiasinterna.aspx?nID=188&nList=GlobalNews Acesso em: 30 set. 2022.

3 Ibidem.

4 BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm Acesso em: 30 set. 2022.

5 FRANCO; Cristiano Roberto. Inteligência Artificial. Indaial: Uniasselvi, 2017, p. 9. Disponível em: https://www.uniasselvi.com.br/extranet/layout/request/trilha/materiais/livro/livro.php?codigo=22869 Acesso em: 30 set. 2022.

6 Ibidem.

7 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 30 set. 2022.

8 WORLD Health Organization. Ethics and governance of artificial intelligence for health: WHO guidance. Geneva (CH): WHO; 2021, p. 26. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240029200 Acesso em: 03/10/2022.

9 Ibidem.

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