Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Este é o primeiro texto de uma série de três nos quais nos estudaremos as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023, que transformou o crime de Injúria Racial em crime de Racismo, incorporando-a na Lei n.º 7.716/89.

Em 11 de janeiro de 2023, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de posse da Ministra de Estado da Igualdade Racial, Anielle Franco, e da Ministra de Estado dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, sancionou a Lei n.º 14.532/2023 que, dentre algumas mudanças, prevê a equiparação do crime de injúria racial ao crime de racismo.

  1. Como era antes?

Em 1988, quando promulgada a Constituição Federal, seu artigo 5º, inciso XLII, determinava que lei posterior criminalizaria o racismo, conferindo a esse delito a inafiançabilidade e imprescritibilidade e a imposição da pena de reclusão. Em 1989, apenas um ano após a promulgação da Constituição Federal, foi sancionada a Lei n.º 7.716/89, conhecida Lei Caó, criminalizando os crimes decorrentes do preconceito de raça e cor.

Em 1997, a Lei n.º 9.459/97 alterou o artigo 1º da Lei Caó que passou a criminalizar os crimes resultantes não apenas de preconceito de raça e cor, mas de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Alargou-se, portanto, o conceito de racismo para abarcar preconceitos não só resultantes de discriminação por raça e cor, mas etnia , religião (preconceito religioso) e procedência nacional (xenofobia). Essa é a redação que se mantém até os dias atuai e não sofreu alteração com a nova lei ora em análise.

Na Lei do Racismo encontravam-se previstos 12 (doze) crimes, e todos levam em consideração o preconceito e a discriminação a partir de elementos como raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há, por exemplo, crime a quem “Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador” (artigo 5º da Lei n.º 7.716/89). Para caracterização desse delito, é imprescindível que o acesso a estabelecimento comercial, por exemplo, seja impedido por meio de preconceito ou discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Em contrapartida, o Código Penal previa em seu artigo 140, §3º, o chamado crime de Injúria Racial. Era (e ainda é, com algumas alterações) a forma qualificada do crime de injúria, isto é, previa pena distinta quando o crime de injúria (ofensa à dignidade de alguém) era praticado por meio da utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, procedência nacional, religião, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

A antiga pena do crime de injúria racial era de 1 (um) ano a 3 (três) anos de reclusão mais multa.

A diferença que residia entre o crime de racismo e o de injúria racial, para além das penas, era que aquele consistia em ofensa a um coletivo de pessoas, apesar da possibilidade do seu direcionamento a uma pessoa determinada (como no exemplo de impedir acesso a estabelecimento comercial), enquanto que a injúria racial consistiria no crime de injúria, portanto ofensa a dignidade e decoro de uma pessoa, utilizando-se de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Na realidade, dos 12 (doze) crimes previstos na Lei de Racismo, antes da nova alteração legal, apenas o crime previsto no artigo 20 se confundia em parte com a injúria racial:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Esse dispositivo legal se assemelha com o da antiga injúria racial na medida em que uma conduta poderia ser interpretada como um ou outro delito. Para solucionar a lacuna legislativa, a construção da jurisprudência e da doutrina, simplificadamente, caminhou em diferenciar as duas condutas, racismo e injúria racial, a partir da vítima atingida e do dolo do agente, isto é, da intenção dele ao praticar a discriminação ou preconceito motivado em elementos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Por exemplo, em sendo uma vítima determinada e estar presente o dolo de ofender a dignidade ou decoro dela, configurar-se-ia, em tese, o crime de injúria racial, já que esse delito visa proteger a dignidade e autoestima da vítima, abalada pelo uso discriminatório ou preconceituoso de elementos ligados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Em sendo o preconceito ou discriminação destinados a uma coletividade a partir de elementos relativos raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e o dolo do agente seja de ofender a toda uma coletividade indeterminada de indivíduos ligados entre si pelos elementos acima descritos, estar-se-ia configurado, em tese, o crime de racismo do artigo 20.

Entretanto, duas diferenças cruciais residiam entre ambos os delitos: o crime de racismo é imprescritível e inafiançável e a ação penal é pública incondicionada, isto é, o Ministério Público detém a titularidade para oferecer a denúncia enquanto o crime de injúria racial não era nem imprescritível e nem inafiançável, bem como a ação era pública condicionada à representação, isto é, o Ministério Público ainda era o titular da ação penal, mas dependia da anuência da vítima que poderia escolher por representar, ou não, criminalmente contra o agressor.

Agora, tudo restou unificado como veremos.

  1. Como fica?

A Lei n.º 14.532/2023 não aboliu o crime de injúria racial, apenas o deslocou do Código Penal para a Lei n.º 7.716/89. A alteração legislativa inseriu o artigo 2º-A na Lei 7.716/89 e modificou a redação da Injúria qualificada (antiga injúria racial) do artigo 140, §3º, do Código Penal.

As novas redações ficaram as seguintes:

Injúria Racial (artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89):

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Injúria Qualificada (antiga injúria racial – artigo 140, §3º, do Código Penal):

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:        (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.       (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Percebe-se, portanto, que houve apenas o deslocamento da injúria racial para dentro da Lei do Racismo e a atual redação da injúria qualificada mantém os elementos “religião, condição de pessoa idosa ou com deficiência”, sendo essa a atual forma qualificada da injúria, agora não mais denominada injúria racial, sendo essa aquela constante no artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89.

A injúria racial mantém os elementos “raça, cor, etnia e procedência nacional”, estando excluída, portanto, da injúria racial, os elementos “religião, condição de pessoa idosa e pessoa com deficiência”.

A pena da injúria qualificada manteve-se a mesma.

A pena da injúria racial foi de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa. Fica, portanto, afastada a possibilidade do réu por injúria racial fazer uso do benefício da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95) em razão da pena mínima superar o patamar de 01 (um) ano exigido pela lei.

A ação penal por crime de Injúria Racial passa a ser pública incondicionada, portanto de titularidade do Ministério Público sem que haja necessidade de representação da vítima para continuidade da ação.

A Injúria Racial passa, agora, a ser inafiançável e imprescritível, apesar de já ter havido em 2021 decisão do Supremo Tribunal Federal, no HC 154.248 julgado pelo Plenário, que estendida os efeitos da imprescritibilidade ao antigo crime de injúria racial.

A alteração legislativa da Lei n.º 14.532/2023 sedimenta o debate antigo da diferença entre injúria racial e racismo na medida em que, atualmente, a injúria racial é uma forma de racismo, ou seja, um dos crimes previstos pela Lei de Racismo.

De plano podemos verificar haver uma incongruência no texto legal. O artigo 1º da Lei de Racismo estipula que essa violência é cometida quando há “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A antiga redação do crime de injúria racial previa todas essas formas de preconceito e discriminação e adicionava a “condição de pessoa idosa ou com deficiência”.

Houve, como dito, o deslocamento do crime de injúria racial para a Lei de Racismo, mantendo, ainda, a forma qualificada da Injúria no Código Penal. Entretanto, na transposição da injúria racial para a Lei de Racismo, o Legislador manteve o “preconceito ou discriminação de religião” como forma qualificada do crime de injúria (no Código Penal) e não o levou para a Lei de Racismo, apesar da própria lei de racismo prever que o racismo se manifesta no preconceito ou discriminação em razão da religião.

A redação atual da injúria qualificada inclui a prática de injuriar alguém com o uso de elementos referentes a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência”. Isto é, parece que o Legislador “esqueceu” que a injúria praticada com o uso de elementos de preconceito ou discriminação religiosa, na verdade, constitui crime de racismo, sobretudo porque o próprio artigo 1º da Lei de Racismo assim dispõe:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.       (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Me parece, portanto, que errou o legislador ao não deslocar a injúria qualificada por preconceito ou discriminação religiosa para dentro da, agora, nova Injúria Racial na Lei de Racismo. O que parece, a partir da leitura do artigo 1º da Lei n.º 7.716/89, é que o Legislador realmente esqueceu do preconceito ou discriminação religiosa.

É evidente que essa forma de preconceito ou discriminação é voltada para religiões marginalizadas e criminalizadas no Brasil, tais como aquelas de matriz africana e aquelas praticadas pelos povos originários. Inclusive, é essa a melhor interpretação a ser dada justamente pela advertência muito bem incluída no artigo 20-C da Lei de Racismo, que será em breve melhor comentado.

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