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Nudiano defende dissertação sobre os danos sociais decorrentes dos discursos de ódio lgbti+fóbico sob a ótica da criminologia crítica

No dia 12 de junho de 2023, o mestrando do Programa de Pós Graduação e Pesquisador do Núcleo de Direito Informacional – NUDI, Pablo Domingues de Mello defendeu sua dissertação intitulada “DISCURSO DE ÓDIO LGBTI+FÓBICO E CRIMINOLOGIA CRÍTICA NO ESTUDO DOS DANOS SOCIAIS: UM ENFOQUE JURÍDICO A PARTIR DA NARRATIVA DE VÍTIMAS NA CIDADE DE SANTA MARIA/RS”.

O trabalho se inseriu no campo da criminologia crítica, especialmente a partir do enfoque dos danos sociais. Também se apoia na ruptura epistemológica da criminologia queer, criminologias feministas, afrocentrada e críticas à colonialidade. O objetivo geral do estudo foi investigar, a partir do enfoque do dano social, os limites e possibilidades para se propor uma construção criminológico crítica do discurso de ódio LGBTI+fóbico propagado dentro e fora do ambiente da internet. A pesquisa foi do tipo qualitativa e adotou perspectivas interseccionais, epistemologicamente situadas e partiu do ferramental metodológico da Teoria Fundamentada nos Dados, de base construtivista como delineado por Kathy Charmaz.

A problemática foi construída em torno dos limites e possibilidades para se propor uma análise criminológico crítica do discurso de ódio LGBTI+fóbico, praticado na internet e fora dela, que dê uma resposta adequada à dor das pessoas que direta e indiretamente vivenciam essa experiência.

A execução empírica do estudo contou com a participação direta de 108 (cento e oito) indivíduos LGBTI+, vítimas de discurso de ódio, maiores de 18 (dezoito) anos, cujas violências ocorreram em Santa Maria/RS ou região próxima em um raio máximo de 200km, e teve a sua execução aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da UFSM. A primeira etapa da pesquisa foi por meio da aplicação de um questionário eletrônico na plataforma Google Forms. Na segunda etapa, aplicou-se uma entrevista semiestruturada aos primeiros 10 (dez) voluntários(as) que demonstraram interesse, por meio do questionário eletrônico, em participarem das entrevistas.

A partir da análise do caso, contatou-se que o discurso de ódio é uma das violências que legitima ideologicamente essa estrutura, manifestando-a, produzindo danos individuais que, por compartilharem uma base em comum com a estrutura social, são identificados como danos sociais. Percebeu-se um desinteresse e receio em denunciar essa violência às autoridades do Estado e privadas diante da desconfiança das vítimas para com essa instituição e seus agentes. Constatou-se os seguintes danos: dano patrimonial; o dano psicológico subdivido em dano afetivo, emocional e familiar; perda de identificação como vítima, subdividido em negação da condição de vítima e negação da violência; suicídio em vida, subdivido em sentimento de perda de tempo de vida, e o dano cibernético.

A banca foi constituída pela orientadora, Prof.ª Dra. Rosane Leal da Silva e pelos avaliadores, Prof. Dr. Rafael Santos de Oliveira e Prof.ª Dra. Marília de Nardin Budó. O trabalho foi aprovado com indicação para publicação.

Abaixo seguem imagens da defesa realizada pelo pesquisador.

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Comentários sobre a Lei n.º 14.532/2023 que equipara Injúria Racial a Racismo – e não, não há criminalização de “humoristas” por “piadas ofensivas”

Por Pablo Domingues de Mello

Este é o primeiro texto de uma série de três nos quais nos estudaremos as principais alterações providas pela Lei n.º 14.532/2023, que transformou o crime de Injúria Racial em crime de Racismo, incorporando-a na Lei n.º 7.716/89.

Em 11 de janeiro de 2023, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de posse da Ministra de Estado da Igualdade Racial, Anielle Franco, e da Ministra de Estado dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, sancionou a Lei n.º 14.532/2023 que, dentre algumas mudanças, prevê a equiparação do crime de injúria racial ao crime de racismo.

  1. Como era antes?

Em 1988, quando promulgada a Constituição Federal, seu artigo 5º, inciso XLII, determinava que lei posterior criminalizaria o racismo, conferindo a esse delito a inafiançabilidade e imprescritibilidade e a imposição da pena de reclusão. Em 1989, apenas um ano após a promulgação da Constituição Federal, foi sancionada a Lei n.º 7.716/89, conhecida Lei Caó, criminalizando os crimes decorrentes do preconceito de raça e cor.

Em 1997, a Lei n.º 9.459/97 alterou o artigo 1º da Lei Caó que passou a criminalizar os crimes resultantes não apenas de preconceito de raça e cor, mas de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Alargou-se, portanto, o conceito de racismo para abarcar preconceitos não só resultantes de discriminação por raça e cor, mas etnia , religião (preconceito religioso) e procedência nacional (xenofobia). Essa é a redação que se mantém até os dias atuai e não sofreu alteração com a nova lei ora em análise.

Na Lei do Racismo encontravam-se previstos 12 (doze) crimes, e todos levam em consideração o preconceito e a discriminação a partir de elementos como raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Há, por exemplo, crime a quem “Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador” (artigo 5º da Lei n.º 7.716/89). Para caracterização desse delito, é imprescindível que o acesso a estabelecimento comercial, por exemplo, seja impedido por meio de preconceito ou discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Em contrapartida, o Código Penal previa em seu artigo 140, §3º, o chamado crime de Injúria Racial. Era (e ainda é, com algumas alterações) a forma qualificada do crime de injúria, isto é, previa pena distinta quando o crime de injúria (ofensa à dignidade de alguém) era praticado por meio da utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, procedência nacional, religião, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

A antiga pena do crime de injúria racial era de 1 (um) ano a 3 (três) anos de reclusão mais multa.

A diferença que residia entre o crime de racismo e o de injúria racial, para além das penas, era que aquele consistia em ofensa a um coletivo de pessoas, apesar da possibilidade do seu direcionamento a uma pessoa determinada (como no exemplo de impedir acesso a estabelecimento comercial), enquanto que a injúria racial consistiria no crime de injúria, portanto ofensa a dignidade e decoro de uma pessoa, utilizando-se de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Na realidade, dos 12 (doze) crimes previstos na Lei de Racismo, antes da nova alteração legal, apenas o crime previsto no artigo 20 se confundia em parte com a injúria racial:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Esse dispositivo legal se assemelha com o da antiga injúria racial na medida em que uma conduta poderia ser interpretada como um ou outro delito. Para solucionar a lacuna legislativa, a construção da jurisprudência e da doutrina, simplificadamente, caminhou em diferenciar as duas condutas, racismo e injúria racial, a partir da vítima atingida e do dolo do agente, isto é, da intenção dele ao praticar a discriminação ou preconceito motivado em elementos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Por exemplo, em sendo uma vítima determinada e estar presente o dolo de ofender a dignidade ou decoro dela, configurar-se-ia, em tese, o crime de injúria racial, já que esse delito visa proteger a dignidade e autoestima da vítima, abalada pelo uso discriminatório ou preconceituoso de elementos ligados à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Em sendo o preconceito ou discriminação destinados a uma coletividade a partir de elementos relativos raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e o dolo do agente seja de ofender a toda uma coletividade indeterminada de indivíduos ligados entre si pelos elementos acima descritos, estar-se-ia configurado, em tese, o crime de racismo do artigo 20.

Entretanto, duas diferenças cruciais residiam entre ambos os delitos: o crime de racismo é imprescritível e inafiançável e a ação penal é pública incondicionada, isto é, o Ministério Público detém a titularidade para oferecer a denúncia enquanto o crime de injúria racial não era nem imprescritível e nem inafiançável, bem como a ação era pública condicionada à representação, isto é, o Ministério Público ainda era o titular da ação penal, mas dependia da anuência da vítima que poderia escolher por representar, ou não, criminalmente contra o agressor.

Agora, tudo restou unificado como veremos.

  1. Como fica?

A Lei n.º 14.532/2023 não aboliu o crime de injúria racial, apenas o deslocou do Código Penal para a Lei n.º 7.716/89. A alteração legislativa inseriu o artigo 2º-A na Lei 7.716/89 e modificou a redação da Injúria qualificada (antiga injúria racial) do artigo 140, §3º, do Código Penal.

As novas redações ficaram as seguintes:

Injúria Racial (artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89):

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Injúria Qualificada (antiga injúria racial – artigo 140, §3º, do Código Penal):

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:        (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.       (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Percebe-se, portanto, que houve apenas o deslocamento da injúria racial para dentro da Lei do Racismo e a atual redação da injúria qualificada mantém os elementos “religião, condição de pessoa idosa ou com deficiência”, sendo essa a atual forma qualificada da injúria, agora não mais denominada injúria racial, sendo essa aquela constante no artigo 2º-A da Lei n.º 7.716/89.

A injúria racial mantém os elementos “raça, cor, etnia e procedência nacional”, estando excluída, portanto, da injúria racial, os elementos “religião, condição de pessoa idosa e pessoa com deficiência”.

A pena da injúria qualificada manteve-se a mesma.

A pena da injúria racial foi de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão para 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa. Fica, portanto, afastada a possibilidade do réu por injúria racial fazer uso do benefício da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95) em razão da pena mínima superar o patamar de 01 (um) ano exigido pela lei.

A ação penal por crime de Injúria Racial passa a ser pública incondicionada, portanto de titularidade do Ministério Público sem que haja necessidade de representação da vítima para continuidade da ação.

A Injúria Racial passa, agora, a ser inafiançável e imprescritível, apesar de já ter havido em 2021 decisão do Supremo Tribunal Federal, no HC 154.248 julgado pelo Plenário, que estendida os efeitos da imprescritibilidade ao antigo crime de injúria racial.

A alteração legislativa da Lei n.º 14.532/2023 sedimenta o debate antigo da diferença entre injúria racial e racismo na medida em que, atualmente, a injúria racial é uma forma de racismo, ou seja, um dos crimes previstos pela Lei de Racismo.

De plano podemos verificar haver uma incongruência no texto legal. O artigo 1º da Lei de Racismo estipula que essa violência é cometida quando há “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A antiga redação do crime de injúria racial previa todas essas formas de preconceito e discriminação e adicionava a “condição de pessoa idosa ou com deficiência”.

Houve, como dito, o deslocamento do crime de injúria racial para a Lei de Racismo, mantendo, ainda, a forma qualificada da Injúria no Código Penal. Entretanto, na transposição da injúria racial para a Lei de Racismo, o Legislador manteve o “preconceito ou discriminação de religião” como forma qualificada do crime de injúria (no Código Penal) e não o levou para a Lei de Racismo, apesar da própria lei de racismo prever que o racismo se manifesta no preconceito ou discriminação em razão da religião.

A redação atual da injúria qualificada inclui a prática de injuriar alguém com o uso de elementos referentes a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência”. Isto é, parece que o Legislador “esqueceu” que a injúria praticada com o uso de elementos de preconceito ou discriminação religiosa, na verdade, constitui crime de racismo, sobretudo porque o próprio artigo 1º da Lei de Racismo assim dispõe:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.       (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Me parece, portanto, que errou o legislador ao não deslocar a injúria qualificada por preconceito ou discriminação religiosa para dentro da, agora, nova Injúria Racial na Lei de Racismo. O que parece, a partir da leitura do artigo 1º da Lei n.º 7.716/89, é que o Legislador realmente esqueceu do preconceito ou discriminação religiosa.

É evidente que essa forma de preconceito ou discriminação é voltada para religiões marginalizadas e criminalizadas no Brasil, tais como aquelas de matriz africana e aquelas praticadas pelos povos originários. Inclusive, é essa a melhor interpretação a ser dada justamente pela advertência muito bem incluída no artigo 20-C da Lei de Racismo, que será em breve melhor comentado.

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Redes sociais, discursos de ódio e moderação de conteúdo: há algo que pode ser feito?

Por Pablo Domingues de Mello

O contexto político brasileiro há anos vem sendo tomado por agressividade, violência verbal e física, e politização das massas, ainda que por vias controversas como o uso de desinformação e fake news para manipulação das massas. As violências verbais que antes eram restritas ao convívio pessoal hoje não mais encontram fronteiras ou barreiras físicas graças ao advento da internet, e em especial das redes sociais, representando essas não apenas um ambiente de potencialização de vozes silenciadas, mas, em uma dimensão negativa, a exposição de grupos socialmente vulnerabilizados a uma forma mais potente de uma violência há muito presente: o discurso de ódio.

Nesse sentido, o direito precisa tanto fornecer respostas sobre os limites da liberdade de expressão a partir de uma visão constitucional sobre a nossa Constituição Federal – parece óbvio, mas por vezes esquece-se que nosso direito é analisado a partir do nosso contexto normativo. Além, é dado ao direito, também, o dever de esclarecer qual o papel dos provedores e plataformas de redes sociais na mitigação e prevenção dos danos causados por discursos de ódio, seja no campo político, seja na afetação ao direito, intimidade e dignidade das pessoas atingidas por essa violência, direta ou indiretamente.

A partir dessas provocações, Daury Cesar Fabriz e Gabriel Heringer de Mendonça, produziram artigo científico com o objetivo de desvelar o papel das plataformas de redes sociais no combate ao discurso de ódio. O trabalho intitulado “O papel das plataformas de redes sociais diante do dever de combater o discurso de ódio no Brasil” foi publicado em 2022 na Revista da Faculdade de Direito da UFPR no volume 67, número 1, páginas 127-149. A investigação contou com uma metodologia de abordagem dedutiva a partir do emprego de um procedimento bibliográfico, com uma revisão da bibliografia, da legislação e da jurisprudência existentes sobre o tema.

O texto traça breves bases de discussão ao conceituar liberdade de expressão no ordenamento jurídico brasileiro. Aqui, a liberdade de expressão recebeu em 1988 status de direito fundamental na Constituição Federal e como tal merece e recebe atenção especial, proteção e garantia por parte do Estado a partir de um dever de abstenção (um direito negativo). Nesse sentido, partindo de uma interpretação completa da nossa Constituição Federal, percebe-se que desde 1988, ano da promulgação da Carta Magna, ela mesma já trouxe limites ao exercício da liberdade de expressão, como a criminalização do racismo, vedação ao anonimato e a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Todos esses direitos em mesmo grau de igualdade: direitos fundamentais essenciais ao exercício de um Estado Democrático de Direito, pelo menos nos moldes pensados pela Constituição de 1988.

Aliás, nesses tempos turvos que vivemos, a interpretação completa da Constituição Federal tem sido tarefa hercúlea, já que grupelos fascistas e proto fascistas preferem não ver o que a Constituição diz, mas o que eles gostariam que ela dissesse. É evidente que a Constituição apesar de ser a base fundante do Estado que vivemos não encontra-se livre de crítica, tem sido criticada há anos! Entretanto, nenhuma crítica pode se basear em uma pretensão de abolição da democracia, ainda que burguesa, porque isso representa não o interesse social, mas o interesse particular de grupos golpistas que, muitas vezes, sequer sabem o que defendem.

Essa crítica pode ser exprimida a partir da leitura do texto de Daury e Gabriel, que defendem, corretamente, a inexistência de um suposto direito absoluto a liberdade de expressão. Defensores dessa linha baseiam-se em grande medida no tratamento dado pelo Estados Unidos da América sobre a liberdade de expressão, inclusive tratamento muito criticado por autores estadunidenses.

Curioso é, contudo, que a defesa por um direito absoluto à liberdade de expressão (leia-se: sem restrição alguma) parte de uma base normativa, teórico e filosófica situada em um país de contexto histórico, social e político totalmente distinto como os EUA. Entretanto, essa importação – acrítica – não se atenta nem para as diferenças entre Brasil e EUA, nem para as críticas existentes a essa doutrina nos próprios EUA, muito menos para as previsões expressas e claras da própria Constituição brasileira, que repudia qualquer noção de uma liberdade de expressão absoluta que sirva de escudo a práticas violentas como o discurso de ódio.

Qualquer análise, então, não situada em nosso contexto normativo, nossa história constitucional e social não se possui qualquer base normativa-jurídico-constitucional, mas apenas um desejo do que gostaria que fosse o direito à liberdade de expressão, não efetivamente o que ele é. Mesmo nesse prisma, em um campo filosófico, a contradição de um direito absoluto acima dos demais direitos constitucionais revela não um apreço pela liberdade irrestrita de expressão, mas por uma liberdade irrestrita de oprimir haja vista que no contexto do capitalismo burguês heterossexual, cisgênero, branco e masculinizado, as diferentes vozes encontram diferentes amplitudes, espaços de acesso e espaços de poder (Akotirene, 2018; Butler, 2021; Bibbings, 2004; Borrillo, 2016; Bonassi, 2017; Bourdieu 1989 e 2020; Biroli, 2013; de Almeida, 2018; Domingues, 2020; Flauzina, 2006 e 2014; Fanon, 2015; Foucault 2014, 2014b, 1984).

Daury e Gabriel deixam claro:

Diante de um conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, não é possível sustentar a prevalência daquela, de forma prévia e sem a análise dos fatos. Isso porque não existe uma hierarquia de direitos fundamentais exposta na Constituição. Logo, diante de um caso de colisão entre a liberdade de expressão e a inviolabilidade da honra/imagem/intimidade, é necessária a análise do caso concreto.

O critério de análise do caso concreto é aquele elaborado a partir da teoria defendida por Alexy (1992) e inclusive aplicado pela Suprema Corte brasileira, em casos paradigmáticos como o caso Ellwanger (HC 82.424), criminalização da homotransfobia (ADO 26 e MI 4733) e pelo Superior Tribunal de Justiça em caso como o da aplicação da Lei de Racismo (Lei 7.176/89) em caso de preconceito contra pessoas moradoras do nordeste brasileiro (REsp 1.569.850).

Faz emergir nesse contexto, e muito bem conduzido pelos autores do texto, o debate acerca do discurso de ódio e essa forma de violência representar legítima restrição do direito fundamental à liberdade de expressão. Para eles, e eu concordo, o discurso de ódio é definido por seu conteúdo, forma e tom empregado pelo emissor, assim como a motivação: “Tais características, que permeiam o discurso, permitem identificar situações de abuso do direito de liberdade de expressão, na medida em que importem em ataques a outros direitos fundamentais previstos na Constituição da República e que deterioram o ambiente democrático”. Ainda, o discurso de ódio, acrescendo, deve estar vinculado necessariamente a características pessoas(ais) da(s) vítima(s) que estejam vinculadas às estruturais sociais vulnerabilizantes apontadas pelos autores Daury e Gabriel como sendo “raça, de gênero, de orientação sexual e de origem/nacionalidade.”.

Por isso, na mesma linha do defendido pelo professor Daniel Sarmento (2006), Daury e Gabriel sustentam que a liberdade de expressão não deve comportar o discurso de ódio, pois, além do aspecto moral, o preconceito e a intolerância veiculados em seu conteúdo não contribuem para um debate racional, gerando o comprometimento da continuidade da discussão.

Resgato o que defendi acima, nem por um aspecto normativo-constitucional, nem filosófico, nem moral, a liberdade de expressão, direito fundamental tão caro a uma democracia tão jovem quanto a brasileira, pode e dever ser utilizado como escudo protetor para condutas agressivas, violentas, degradantes, desmoralizantes e que se soma aos preconceitos e discriminações estruturais e institucionais existentes na sociedade para propagar o ódio e eliminação de pessoas socialmente vulnerabilizadas.

Surge, pois, o chamado dever fundamental de combate ao discurso de ódio, uma dimensão constitucional relacionada com os direitos fundamentais. Na lógica constitucional e interpretada por Daury e Gabriel, tomando de partida os ensinamentos de Lyra et. al. (2020) os direitos fundamentais pressupõem deveres fundamentais, haja vista que qualquer direito denota “o cumprimento de ao menos um dever, tanto para os poderes públicos (deveres de proteção) como para as pessoas (deveres fundamentais)”.

Direitos e deveres fundamentais, então, apesar de sua imbricada relação, são identificáveis perante uma autonomia e marcados por uma ausência de ordem prevalente. Há, pois, um equilíbrio entre direitos e deveres fundamentais sendo esses últimos voltados para

[…] proporcionar as bases materiais para existência e funcionamento da sociedade e para a concretização dos direitos fundamentais de todos, decorrentes de uma ordem jurídica democrática, com posição de primazia normativa e controle de revisão (fundamentalidade formal), cujos conteúdos integram o estatuto da pessoa, formado por direitos e deveres fundamentais e orientado pela dignidade da pessoa humana (fundamentalidade material) (LYRA et. al, 2020, p. 69)

Assim, defendem Daury e Gabriel, a existência de um dever fundamental de atuação contra o discurso de ódio, na medida em que este gera a segregação e a discriminação de pessoas determinadas ou grupos, em uma logica de exclusão, de preconceito e de intolerância. Essa defesa decorre especialmente do direito fundamental à liberdade de expressão quanto do princípio da dignidade humana, representada nos direitos fundamentais tais como igualdade (artigo 5º, caput, da Constituição Federal); igualdade de gênero (artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal); inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal) e criminalização do racismo[1] (artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal).

Por fim, a partir das provocações acima elencadas pelos autores, eles introduzem a internet como ambiente de análise do conflito entre liberdade de expressão, discursos de ódio e o dever fundamental do Estado e da sociedade civil em combater o discurso de ódio. Especialmente, os autores centram sua análise nas redes sociais, essas definidas como “um serviço ofertado na internet, no qual os indivíduos constroem seu próprio perfil (aberto ou não) e criam uma lista de outros usuários com os quais compartilham uma conexão, permitindo, assim, que eles se comuniquem entre si e que um visualize e compartilhe a lista de contatos do outro” (Boyd; Elisson, 2008, p. 211).

São, pois – as redes sociais – na palavra dos autores “empreendimentos privados, nos quais os usuários atuam como um webmaster de si mesmo, enquanto o fornecedor atua como um provedor de hospedagem e se vale do conjunto de dados divulgados pelo usuário para contratar anunciantes, que oferecem produtos de acordo com as preferências que são declaradas” (p. 137).

Como componentes da internet, responsável por criar uma sociabilidade virtual, o ciberespaço, as redes sociais são atravessadas por estruturas computacionais, tecnológicas tais como algoritmos e marcas de governança privada permeadas por interesses, valores e códigos privados. Não são dados ontológicos retirados da natureza porquanto são produtos direto da produção humana e, portanto, enviesadas.

Tratando especificamente das redes sociais, os autores trabalham a partir do contexto normativo brasileiro, resgatando as disposições do Marco Civil da Internet (Lei n.º 12.965/2014), um divisor de águas na relação das plataformas de redes sociais no Brasil. Até a promulgação da lei, jurisprudência e doutrina jurídica discutiam a responsabilidade de plataformas de redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Youtube, a respeito de conteúdos publicados em suas redes, em especial aqueles com conteúdo ilício (como o discurso de ódio). O Marco Civil da Internet normativiza e adota um posicionamento de privilégio da liberdade de expressão em detrimento de outros direitos ao assegurar, em seus artigos 18 e 19, a isenção das plataformas de responsabilidade pelo discurso divulgado por terceiros, fazendo surgir uma obrigação dela apenas após notificação judicial para tanto.

É possível perceber que as disposições contidas no Marco Civil da Internet vão de encontro com a teoria de Alexy antes apresentadas, bem como as premissas adotadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça ao atribuir de forma prévio um privilégio maior à liberdade de expressão em detrimento de outros direitos. A partir do posicionamento apresentado anteriormente, a restrição de um direito fundamental em detrimento de outro apenas poderia ocorrer a partir da análise do caso concreto e não previamente estabelecido.

Por isso, Daury e Gabriel apontam para uma “falta de proteção gerada para a vítima” (p. 140), a qual necessita buscar o Judiciário para fazer cessar uma violação de seu direito, algo custoso porquanto depende ou da atuação da Defensoria Pública, mediante empenho de recursos públicos, ou de advogados privados, mediante empenho de valores financeiros da vítima.

Assim, com a quase desoneração do Estado na regulação da matéria, as plataformas de redes sociais, por meio de instrumentos de governança privada, regulam a comunidade através de termos celebrados pelos usuários, responsáveis por determinar quais condutas serão, ou não, aceitas (p. 141). Parte-se, pois, de uma premissa de inexistência de neutralidade das redes, diante da expressiva atuação de filtros e derrubadas de conteúdos ilícitos (contrários ao Direito) ou proibidos (contrários às normas de uso da rede social).

Representa-se esse modelo, portanto, a partir de um modelo estadunidense, de uma lógica de controle posterior, “mediante sistema de denúncias por parte dos usuários. Esse tipo de mecanismo é conhecido como flagging e, geralmente, desencadeia um processo de revisão feito por moderadores humanos” (p. 141). Esse modelo é adotado pela gigante das bigtechs, a Facebook (atual Meta), dentre outras plataformas de redes sociais.

Por meio do auxílio da tecnologia, como algoritmos, as redes sociais valem-se de mecanismos que trabalham na lógica do visível/invisível, realizando direcionamento e determinando a maior exposição de dado conteúdo, e, assim, estimulando ou não a divulgação de informações sobre certo tema. Nessa lógica, o algoritmo trabalha para identificar preferências dos usuários e, dessa forma, estimular sua navegação (p. 142). Há, ainda, uma problemática envolvendo o quê é definido como conteúdo não permitido pelas redes sociais, já que os critérios adotados pelas empresas, consequentemente pelos moderadores de conteúdo e processos de automatização, mudam e são orientados por um standard normativos aberto e vago, baseado em um complexo sistema de regras internas em um paradigma de governança privada.

Por fim, os autores chamam atenção para o que devem ser desempenhado pelas plataformas de redes sociais no combate do discurso de ódio, chamando atenção para um constitucionalismo digital (Nitrini, 2021, p. 132). Nessa perspectiva, o constitucionalismo seria atualizado para o ambiente digital, em especial a noção de eficácia horizontal de direitos fundamentais entre particulares. Além do dever fundamental de atuação contra o preconceito e a discriminação, o modelo de controle de discurso de ódio implementado pelas plataformas de redes sociais segue a ótica de negócio, como uma exigência do mercado para angariar cada vez mais usuários, por meio da necessidade de manutenção de um ambiente seguro e atraente para seus consumidores (Balkin, 2018, p. 2.022).

Reside a problemática em torno do excesso de liberdade das plataformas digitais de redes sociais em editar regras, sendo essas regras dotadas de uma falta de transparência sobre os critérios utilizados na moderação de conteúdo. Soma-se a isso a falta de um devido processo no qual o usuário bloqueado ou removido possa argumentar e tentar reverter a ação da plataforma (p. 144). Os autores concluem, então, que “o importante não é buscar anular a atuação das plataformas de redes sociais na moderação do discurso, mas sim investir no fortalecimento da relação entre Estado e empresas de infraestrutura de internet. A atuação conjunta das duas esferas é essencial para o sucesso no combate ao discurso de ódio e para a manutenção do nível necessário de liberdade de expressão.”

No estágio atual do ciberespaço, as redes sociais detêm o controle, dirigindo o poder tradicional do Estado, de modo que às empresas de redes sociais é imposta a adoção de meios rápidos e de custos menores para agir nas situações necessárias. Também não se pode perder de vista, evidente, a necessidade de atuação governamental na regulação do ciberespaço, sob pena da lógica da atividade empresarial das redes sociais ser pautada por critérios de mercado e não pelos critérios constitucionais e legais existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

Partilho da ideia e solução dos autores, adicionando que o modelo de governança privada das redes sociais é importante sobretudo pensando em soluções de prevenção ao discurso de ódio. Por exemplo, por meio da tecnologia – que existe – as plataformas de redes digitais poderiam criar mecanismos de verificação de conteúdo antes da sua postagem, isto é, o usuário seria notificado antes de efetuar uma postagem sobre a possibilidade daquele conteúdo ferir direitos alheios e por consequência sofrer sanções legais e internas, das próprias diretrizes da plataforma.

É, ao meu sentir, um exemplo reformista de bom uso do algoritmo para identificar possíveis conteúdos marcados por discurso de ódio e tentar impedir a sua postagem que, se ocorrer, o usuário esteve previamente advertido das consequências legais da sua conduta.

Acredito que os problemas relacionados ao mau uso das redes sociais e a negligência do mercado e dos Estados em buscar uma real regulação do ciberespaço está muito mais relacionado a um problema estrutural, do modo de produção capitalista, do que conjuntural, ligado a uma política ou outra adotada por Estados e empresas. Entretanto, em um contexto de busca por soluções mais imediatas, acredito que a imposição por parte do Estado para que as empresas tornem públicas, claras e em linguagem acessível os termos de uso e conduta das suas plataformas, o uso de algoritmos para retirada de conteúdos ofensivo do ar, bem como a prevenção de sua postagem conforme apresentado acima, e, por fim, a refundação da responsabilização civil das empresas por danos praticados por terceiros são alguns caminhos para iniciar uma discussão mais profunda sobre a prevenção e remediação de discursos de ódio praticados nas redes sociais.

REFERÊNCIAS:

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[1] Entendendo-se, aqui, o racismo, inclusive, como dimensão da homotransfobia, protegendo assim integrantes da comunidade LGBTI+ conforme decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26 e no Mandado de Injunção n.º 4733

Para juiz, negar o holocausto não implica em ofensa ou inferiorização do povo judeu

Por Pablo Domingues

Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei” (ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 139)

Na obra acima citada, a filósofa judia Hannah Arendt conta sobre o julgamento de Adolf Eichmann, braço direito de Hitler e um dos principais responsáveis por operacionalizar o Holocausto nazista, pelo Tribunal de Nuremberg. Simbólico, no mínimo, iniciar este texto com um trecho ilustrando o que Arendt conceitua como “banalidade do mal”, já que Eichmann afirmava não passar de um homem que respeitava as leis e, portanto, seria inocente. Afinal, afirmava que eram ordens superiores de Hitler e não representavam sua vontade, simbolizado este fato em uma de suas frases de defesa “Eu não era um líder responsável, e, como tal, não me sinto culpado”.

Esta referência à obra da filósofa mostra-se apropriada para a reflexão técnica e crítica da decisão prolatada recentemente pela Justiça Federal nos autos da ação penal n.º 0809172-03.2020.4.05.8100, que absolveu acusado da prática de racismo, crime previsto no art. 20, §2º, da Lei Federal nº 7.716/1989. No caso, o acusado, em 14/03/2020, por meio de uma publicação na rede social Facebook, publicou texto revisionista sobre o holocausto. Dentre os dizeres, destaca-se o trecho em que o autor afirma: “Os judeus estão se vingando da civilização por terem sido escravos no Egito por 430 (Êxodo 12:40), daí terem escravizado a civilização usando o falacioso Holocausto para se vitimizar propagando que seis milhões de judeus teriam sido assassinados na Segunda Guerra, mas que não há uma só prova, pelo contrário, pois até intelectuais judeus negam esse evento fantasioso”.

A análise aqui empreendida respeita o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, assim como não se constitui em crítica pessoal ao magistrado, limitando-se à análise técnica dos fundamentos utilizados pelo juiz para absolver o réu na ação penal em questão, o que é feito a partir da consideração de que nenhuma decisão judicial, no Estado Democrático de Direito, é igualmente imune de críticas fundamentadas em aspectos técnicos.

Pois bem, a denúncia de racismo se motivou pelo revisionismo histórico apresentado pelo acusado em seu texto publicado no Facebook, de modo que o Ministério Público Federal sustentava, dentre várias razões (as quais subscrevo) que “a publicação do acusado subverte fatos históricos incontroversos com a clara intenção de desqualificar o povo judeu e acirrar ideias preconceituosas e discriminatórias (página 02 da sentença)”.

Como propriamente afirmado pelo juiz, que havia rejeitado a denúncia em um primeiro momento, decisão que fora revertida pelo Tribunal, a peça defensiva refletia “boa parte a posição deste juízo em relação à interpretação que deve ser dada à liberdade de expressão” (página 03 da sentença). Em um episódio não-muito-casual, o julgador fez das palavras da defesa suas para absolver o réu da prática a ele imputada.

Partindo de uma premissa de liberdade de expressão, que o juiz afirma existir neste caso, haveria “uma pessoa que pensa diferente de nós” (página 3 da sentença). O discurso de ódio seria um conceito impreciso que levaria uma punição da “violência simbólica”, conceito esse “também impreciso” (página 3 da sentença).

Como se depreende da decisão, o conceito de discurso de ódio é abstrato e impreciso, de modo que utilizá-lo com o pretexto de imputar fato delituoso representaria um risco à liberdade de expressão. Neste ponto, a decisão não faz menção a ressalvas ou eventual limitação, levando-se a pensar que, para o decisor nenhum discurso de ódio poderia ser punido. A proibição de discursos de ódio levaria, em último estágio, ao cerceamento do direito de se expressar livremente, impedindo que pessoas digam o que “[…] é belo e o que não é, o que é sensato e o que é insensato, o que é amor e o que é ódio” (página 3 da sentença).

Punir o discurso de ódio representaria, de alguma forma não muito bem explicada, impor “novos (e novos…) requisitos para exercício “adequado” da liberdade de expressão findará, é claro, por eliminá-la” (página 3 da sentença). Então, para salvaguardar a liberdade de expressão, a decisão é expressa no sentido de que “Não se pode naturalizar a censura ou se admitir a perseguição penal daqueles que pensam o oposto de nós” (página 3 da sentença). Este foi um dos fundamentos para absolver o acusado que, dentre várias alegações, afirmou ser o Holocausto nazista uma invenção histórica do povo judeu para “se vitimizar” perante o mundo e que “até intelectuais judeus negam esse evento fantasioso” (página 2 da sentença). Necessário pontuar que a materialidade e a autoria delitivas foram incontroversas, ou seja, é fato incontroverso que essas palavras foram escritas pelo réu na rede social Facebook.

Aqui faz-se necessária uma pausa para analisar os pontos até agora levantados da sentença. O magistrado qualifica o conceito de discurso de ódio como “abstrato”, afirmando que não seria possível a punição de uma “violência simbólica” sob pena de sacrificar-se o livre exercício da liberdade de expressão. Contudo, parece ignorar a doutrina produzida pelos/as juristas brasileiros/as sobre a temática.

No plano doutrinário, discurso de ódio se caracteriza como uma manifestação segregacionista, baseada na dicotomia superior (emissor) e inferior (atingido) e, como manifestação que é, passa a existir quando é dada a conhecer por outrem que não o próprio autor1. São discursos de incitamento ao ódio, representações simbólicas que expressam ódio, desprezo ou desrespeito a outra pessoa ou grupo2.

Apesar de a internet propiciarespaço propício para o exercício da liberdade de expressão, principalmente por meio dos sites de redes sociais, pois é nesse ambiente que as pessoas interagem com maior intensidade, mediante a criação de perfis e da participação em comunidades3, a decisão parece ignorar a construção empírica sobre a violência neste ambiente. Mais ainda, a doutrina especializada alerta sobre a propagação desses discursos de ódio na internet em razão da velocidade com que se propaga e a capacidade de disseminação e captação de ideias semelhantes no ambiente virtual.

Meyer-Pflug4 (2009, p. 97) conceitua o discurso de ódio propagado na internet como algo que “consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias”. Esses discursos teriam a finalidade deliberada de desqualificar e inferiorizar um grupo de pessoas, cuja dignidade se vê aviltada pelo emissor. Assim, surge o ódio como forma de expressão do indivíduo por meio da internet5.

O caso dos autos é o exemplo clássico que a literatura especializada dá ao discurso de ódio. Não somente o réu propôs uma teoria absurda negacionista (perdão pelo pleonasmo), mas também atribuiu ao povo judeu a responsabilidade pela disseminação (e invenção!) da epidemia de gripe suína (H1N1) e da epidemia da Peste Negra na Idade Média. Beira ao delírio acreditar que alguém escrevendo essas acusações é pessoa afeita ao povo judeu. Beira o absurdo (tudo neste caso beira o absurdo) querer acreditar que o réu não possui nenhum preconceito, ódio ou ressentimento com o povo judeu. Disfarçado de um discurso conspiracionista, na realidade, o que fez o réu foi vilipendiar a memória do povo judeu ao indicar que o Holocausto nunca teria ocorrido e, pior, atacar a coletividade do povo judeu ao atribuir a eles a criação de duas epidemias responsáveis por incontáveis mortes.

Não à toa o estudo do discurso de ódio tem caminhado no sentido de explicar que essa prática discursiva não se resta configurada apenas quando há um ataque direto a uma pessoa, com ofensas direcionadas e ela utilizando-se de seu gênero, raça, procedência nacional ou outra característica essencial à pessoa. Entende-se por discurso de ódio velado aquele que dissemina o ódio, a opressão, o desprezo a um grupo de pessoas identificados por uma característica que as une (neste caso a característica é ser judeu), utilizando-se desse traço identitário para promover o ódio, a inferiorização e a opressão. Mesmo que no Brasil não haja uma tradição antissemita, não é novidade (ou não deveria ser afinal até isso é questionado no caso) a opressão vivida por este povo durante o regime Nazista de Hitler.

O discurso de ódio velado mostra-se, neste caso especialmente, como mais nocivo porque propõe normalizar o absurdo. É vestido de uma linguagem supostamente científica, polida, por vezes valendo-se de argumentos muito pessoais como opinião ou religião, o que causa no indivíduo ou grupo ofendido a dificuldade na identificação dessa violência já que fantasiada de uma mera opinião pessoal, supostamente protegida pela liberdade de expressão. E é por isso que essa forma de discurso de ódio deve receber especial atenção, sobretudo do Estado.

Mas não é somente a naturalização da violência que causa espanto na referida decisão, como também a exceção à prática forense do processo penal, quando o juiz faz das palavras da defesa suas. Dentre os trechos selecionados pelo magistrado, destaca-se aquele com teor mais perigoso por revelar elevadíssimo tom de negacionismo histórico e científico, além de minimizar a memória sobre as mais de 6 milhões de vidas perdidas durante o Holocausto nazista:

16. A priori, teorias revisionistas do holocausto, por si só, não implicam necessariamente em ofensa ou inferiorização do povo judeu, mas apenas na negação de um fato histórico, assim como há quem negue que o homem foi à Lua (página 04 da sentença)

Compara-se a negação da morte de milhões de judeus nos campos de concentração com a negativa de que o homem (sic) esteve à lua. Por meio de uma falácia de falsa simetria o magistrado, ao invocar as palavras da defesa, endossa-as, como mesmo disse.

Endossa não somente a absolvição e não a faz do ponto de vista técnico, mas endossa a minimização do que o discurso de ódio representa e, nessa esteira, vilipendia a memória das vítimas do Nazismo e de seus familiares. Transforma aquela que foi uma das maiores produções de ódio, marcada pela morte, pelo sequestro, pelo apagamento, em um simples “concordo ou discordo”.

Analisando-se a sentença é possível perceber a clara assunção dos argumentos do réu como fundamento para a decisão, o que é no mínimo estranho. Em outra passagem (página 03 da sentença) chama a atenção a expressão utilizada no início do parágrafo onde se encontra a expressão “A meu ver…” para fundamentar a decisão que, ao final, declara a absolvição do acusado por fato atípico, pela conduta a ele imputada não constituir crime, especialmente de racismo. Tal expressão denuncia que o julgador julga “de acordo com sua consciência” e com suas ideologias, o que é perigoso e antidemocrático, pois ao fazer a denúncia o Ministério Público Federal não buscava “a opinião pessoal do juiz”. Ao contrário, não se quer a opinião da pessoa-juiz, mas sim o posicionamento do Estado-juiz que, em um Estado Democrático de Direito, deve ser de acordo com a lei, não com opiniões pessoais.

Acolhendo e reproduzindo literalmente argumentos do réu, a sentença é no sentido de não ter se caracterizado o delito previsto no art. 20, §2º, da Lei Federal nº 7.716/1989, por não preenchimento dos requisitos do tipo penal, sobretudo porque não restou demonstrada, na conduta do réu, “autêntica intenção de dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente. Contudo, tais requisitos mencionados na decisão sequer existem no tipo penal em questão, que prevê os seguintes verbos para a caracterização do delito:  Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

O que há é o uso de requisitos não previstos em lei, seja no tipo penal, seja nos princípios gerais de direito penal, para buscar uma absolvição que reflete não uma opção jurídica, mas crenças pessoais (A meu ver…) e quiçá posições ideológicas que fogem ao debate técnico do tema e contrariam posicionamento anterior do Supremo Tribunal Federal (STF) em caso similar. O posicionamento adotado pelo STF no HC 82424/RS (Caso Ellwanger) não é ignorado pelo decisor, que inclusive a menciona. Naquele caso, a Suprema Corte debateu os limites de significado da palavra “racismo” e a suposta colisão, de dois direitos fundamentais: liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana. Contudo, apesar da solução constitucionalmente correta no caso, a resposta era bem simples, assim como neste caso.

Não cabia à Suprema Corte, e nem ao juiz deste caso, discutir a presença, ou não, do direito à liberdade de expressão, nem a ponderação entre os direitos fundamentais de dignidade da pessoa humana e liberdade de expressão. A questão era se a conduta de Ellwanger, e consequentemente do réu do processo ora em análise, era, ou não, típica, antijurídica e o agente era culpável, requisitos adotados pela legislação brasileira para imputar a alguém a prática de crime. Não se trata de uma colisão entre valores em que há necessidade de sopesar qual direito deve ser tolhido em detrimento do outro6. Como pode uma conduta, no caso em concreto, ser lícita e ilícita ao mesmo tempo, a depender de qual direito fundamental será “preterido”?

Essas provocações demonstram que a invocação da liberdade de expressão como escudo à coibição e punição de discursos de ódio não encontra qualquer respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. Veja-se que a própria Constituição Federal de 1988 prevê, em seu artigo 5º, inciso XLII, a previsão do crime de racismo, destacando seu caráter especial por ser inafiançável. Mais ainda, o artigo 20 da Lei 7.716/89 descreve a conduta de discurso de ódio racista, apesar de não denominá-lo como tal.

Em outras partes da legislação brasileira, a liberdade de expressão já foi previamente preterida em prol da proteção de outros direitos. Essa é relativizada pela própria Constituição Federal, a exemplo: a vedação ao anonimato (art. 5º, inciso IV); proteção e o respeito do direito de resposta, proporcional ao agravo (art. 5º, inciso V); inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem (Art. 5º, inciso X), dentre outros. No plano infraconstitucional, além da Lei de Racismo, ignorada neste caso, há os crimes de injúria, calúnia e difamação (artigos 140, 138 e 139 do Código Penal, respectivamente) como alguns exemplos de situações em que a liberdade de expressão pode constituir um abuso de direito fundamental e, por consequência, ser aplicada uma punição (penal ou não).

É preciso dizer que negar as mortes do Holocausto não é o mesmo que negar que o céu é azul ou que no mar há água. Todos os exemplos são fatos comprovados, mas apenas um deles toca na memória coletiva de um povo, de uma nação.

A negação de fatos científicos tem se tornado demasiadamente comum nos tempos em que vivemos. Nega-se a ciência, nega-se a morte, negam-se os fatos históricos e, com isso, criam-se comunidades de adeptos de teorias estapafúrdias que, como visto, não se restringem a opiniões de internet. Chegam ao mundo real, físico (ocupam lugares no Poder Judiciário) e quando o fazem, é com violência física, morte e opressão.

Não se trata, portanto, de uma violência simbólica como mencionado na decisão: pelo contrário, é a pedra de toque de uma violência que chega à esfera física e da intimidade do indivíduo. Mais ainda, contribui para a manutenção de um ideário político e social que tem na negação da existência das opressões sua pedra fundante. Nega-se o racismo, nega-se a homotransfobia, nega-se a misoginia, nega-se o antissemitismo e, no final, negam-se as mortes causadas por esses fatores. Mortes essas que são reduzidas a estatísticas, números que serão contados nos cadernos da história.

A mensagem passada pela decisão não é só uma manifestação isolada, é o posicionamento do Estado-juiz dando uma mensagem de desesperança à população que sofre na pele diariamente as chagas da opressão social. É dizer: aqui vocês não serão compreendidos e suas dores não serão reconhecidas.

Referências:

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2 TASSINARI, Clarissa; JACOB DE MENEZES NETO, Elias. Liberdade de expressão e Hate Speeches: as influências da jurisprudência dos valores e as consequências da ponderação de princípios no julgamento do caso Ellwanger. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 9, n. 2, p. 7-37, jan. 2014, p. 19. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/461. Acesso em: 16 jun. 2021

3 SILVA, Rosane Leal da; BOLSON DALLA FAVERA, Rafaela. Estudo do caso Klayman v. Zuckerberg and facebook: da liberdade de expressão ao discurso do ódio/Study of the case klayman v. zuckerberg and facebook: from freedom of speech to hate speech. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 13, n. 2, p. 273-292, ago. 2017, p. 275. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/923/1221. Acesso em: 16 jun. 2021

4 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 97

5 STEIN, Marluci; NODARI, Cristine Hermann; SALVAGNI, Julice. Disseminação do ódio nas mídias sociais, análise da atuação do social media. INTERAÇÕES. Campo Grande, v. 19, n. 1, p. 43-59, jan./mar. 2018, p. 47. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/inter/v19n1/1518- 7012-inter-19-01-0043.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021

6 TASSINARI, Clarissa; JACOB DE MENEZES NETO, Elias. Liberdade de expressão e Hate Speeches: as influências da jurisprudência dos valores e as consequências da ponderação de princípios no julgamento do caso Ellwanger. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 9, n. 2, p. 7-37, jan. 2014, p. 26. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/461. Acesso em: 16 jun. 2021